O Ciclo Inescapável de Abara – Review

Abara é um mangá sci-fi de 2 volumes lançado em 2005. Escrito e ilustrado por Tsutomu Nihei (Blame, Biomega) o quadrinho foi publicado na Ultra Jump (Jojolion, No Guns Life). No Brasil, Abara foi publicado pela editora Panini em 2009.

Sinopse: Abara apresenta um mundo distópico, em um futuro distante. A história se centra na luta de entre Gaunas, criaturas que podem utilizar seus ossos para criar armaduras. Os Gaunas pretos, também conhecidos como Gaunas artificiais, tentam a todo custo impedir que os brancos extingam a humanidade.

Minha jornada com Abara é uma um tanto curiosa. A primeira vez que eu li o quadrinho, ali por 2016, eu simplesmente odiei. Foi uma experiência absolutamente confusa, e eu sai entendendo menos que quando comecei. Já hoje, com uma bagagem muito maior, e conhecendo muito mais do trabalho do Nihei, Abara cresceu muito no meu conceito. Mas não foi só a bagagem e a idade que mudaram, existiu uma terceira e importantíssima diferença entre o antes e o agora: o texto.

Essa review não quer, de maneira alguma, menosprezar o trabalho que a galera dos scans faz por nós, mas Abara é um dos casos que uma tradução amadora pode destruir completamente a experiência. É um mangá que fala as coisas de forma sempre muito tangencial, dando espaço para que o próprio leitor conecte os pontos. O texto do quadrinho é bastante cirúrgico com onde e o que dizer em cada momento. Isso faz com que a tradução de uma tradução perca a essência, deixando um texto já difícil, incompreensível.

Outra mudança importante que a leitura no oficial vs scan faz é a compressão das imagens. Abara é o pico do estilo inicial do Nihei, sendo o mangá mais detalhado e ambicioso do autor. Mesmo na versão oficial da Viz, que foi na qual eu li, por vezes é difícil de pegar quem tá fazendo o que em cenas mais caóticas. Quem dirá em uma versão mega comprimida em baixa qualidade que tu acha nos sites de scan. Então, se tua primeira experiência com Abara foi nessas condições, é muito difícil que tire qualquer coisa da leitura mesmo. Se tu tiver domínio do inglês, recomendo fortemente tentar uma nova leitura com a versão deluxe da Viz, já que imagino que encontrar os volumes da Panini beire o impossível.

Acho importante já começar dando destaque para a ousadia do Nihei. Parte do que ele queria fazer com Abara é demonstrar seres diferentes tendo percepções de tempo diferente. Boa parte da história se concentra nessa questão.

De um lado, temos nós, simples humanos. Vivemos no nosso tempo normal. De outro, os gaunas. Esses seres mega poderosos existem em uma velocidade absolutamente diferente. Isso faz com que o Nihei precise reiteradas vezes trocar entre as perspectivas durante o quadrinho. Justamente por isso Abara é o trabalho mais ambicioso do autor.

Em um quadrinho, uma mídia estática, ele precisa deixar claro quando estamos em ultra-velocidade e quando o tempo está correndo normalmente. Seria muito fácil colocar algum aviso sonoro, ou mesmo um personagem de fora expondo as mudanças. Mas Abara confia no leitor o bastante para fazer tudo através unicamente da arte.

Isso pede do quadrinista um controle gigantesco do cenário durante os combates. Os personagens precisam se mover, mas os detritos e as deformações precisam estar paradas no tempo. E isso contribui para o sentimento desesperador que circula Abara. Os gaunas existem tão rapidamente que não a escapatórias. São existências invisíveis que conseguem engolir cidades inteiras numa virada de página.

E falando do mundo de Abara, é uma construção um tanto interessante. Uma sociedade que está em decadência, mas não uma veloz tal qual um apocalipse zumbi. O universo de Abara está sendo engolido aos poucos, e o sentimento de luto é uma constante do quadrinho.

Para dar um exemplo, temos os Mausoléus. Essas construções são tão grandes quanto montanhas, e estão sempre presentes ao lado da cidade em que se passa a história. No passado, centenas delas já existiram, e uma a uma foram sendo desmanteladas. Esses Mausoléus são o alvo dos gaunas, mas quem destruiu a maior parte deles foi a própria humanidade. Acontece que isso já aconteceu tão no passado, que no tempo que a história se passa ninguém sequer sabe que o Mausoléu existe, mesmo ele estando ao alcance.

E esse sentimento de desconhecimento e apagamento está lá em todos os cantos. Os próprios gaunas são mantidos em segredo. O culto mais poderoso daquele universo, a Aliança Quaternária, que definiu boa parte das regras e protocolos, já está extinta a séculos. Mesmo assim os personagens ainda estão presos aos seus dogmas, sem sequer saber porque. É como se o mundo de Abara estivesse a um passo de ser esquecido, num canto frio do espaço.

Mas Abara é principalmente sobre ciclos. A própria existência e o surgimento dos gaunas é um evento cíclico dentro daquela história. E eu não tenho nenhuma base sólida para afirmar isso, mas temos peças aqui e ali jogadas que nos fazem acreditar que esse não é o primeiro planeta que foi morada da humanidade.

Assim, se Biomega trabalha o apocalipse como algo otimista, um novo começo cheio de possibilidades, Abara faz o oposto. Para Abara, a humanidade está fadada a cair nos mesmo erros, de novo e de novo, enquanto tenta escapar do inescapável, sua própria extinção. Os gaunas sempre vão voltar, não importa quantos planetas abandonemos, principalmente porque os gaunas nascem da própria humanidade.

E mesmo sem a existência dos monstros destruidores de planetas, a própria sociedade já tinha decaído ao ponto de se aglomerar em cidades sujas e apertadas.

Pra arrematar essa ideia dos ciclos, temos o Digimortal. Digimortal é um extra que está no final de Abara. Nele, uma cidade é dominada por um culto religioso, muito similar ao que nos é contado sobre a Aliança Quaternária.

Na história inteira, não existe sequer um gauna branco. Mas isso não impediu do levante do culto religioso, que aprendeu engenharia genética ao escavar relíquias de uma sociedade antiga. Digimortal pode muito bem ser um prequel de Abara, não é difícil ligar os pontos, sobre como os experimentos na criação de gaunas pretos foi justamente o que fez os gaunas brancos encontrarem a humanidade.

Mas Digimortal pode ser também uma sequel para Abara. Uma ponte para como, por mais esperançoso que possa ser um novo Adão e Eva, estamos fadados a nos destruir em busca de poder e controle. Digimortal pode ser, ao mesmo tempo um prequel e um sequel, por que Abara é um ciclo, um ciclo inescapável de morte e recomeço.

Abara é uma história que deixa muito do que ela quer dizer aberto para o leitor pensar e discutir. Então o que vocês leram aqui é a minha leitura dessa história. Fiquem mais do que a vontade de colocarem as suas nos comentários e discutirem entre si, sempre educadamente é claro. Para aqueles que não leram, fiquem tranquilos, de forma semelhante ao Ovo de Deus, é meio impossível dar spoiler de Abara. Assim como eu falei muito, teve boa parte das discussões de lore que eu deixei de fora, justamente porque o mais legal é escavar por si mesmo.

E ai, leu Abara? Gostou? Odiou? Diz aí o que achou e, claro, qual o próximo mangá que deve aparecer por aqui.25

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