Undead Murder Farce – O Falso Progresso Positivista

Protagonista de Undead Murder Farce dormindo em campo de flores

Shinuchi Tsugaru é o que pode ser descrito como um farsante. O homem, conhecido como Matador de Onis ganha a vida no Japão matando yokais em uma arena clandestina, sendo ele um híbrido de yokai e humano. A vida do Tsugaru tem uma virada, quando Rindo Aya, uma imortal que teve seu corpo roubado oferece a ele uma proposta que ele não pode recusar. Undead Murder Farce conta a história da dupla trabalhando como detetives na Europa durante a virada do Século XX.

Undead Murder Farce é um anime de 13 episódios, lançado durante a temporada de verão de 2023. A série é uma adaptação do romance homônimo, escrito por Yugo Aosaki, atualmente ainda em publicação.

A versão animada da série foi produzida pela Lapin Track, com direção de Omata Shinichi (Kaguya-sama: Love is War, Showa Genroku Rakugo Shinju) e composição de série de Takagi Noboru (Baccano!!, In/Spectre). Undead Murder Farce está disponível no Brasil através da Crunchyroll.

Um piloto instigante

Algo que me chamou atenção logo de cara nesse anime foi que ele trouxe seu primeiro episódio é bastante forte. Através dele somos apresentado a essa versão alternativa do final da Era Meiji, na qual os seres místicos de fato existiam e passaram a ser exterminados em prol do progresso.

Isso me acendeu uma luz amarela, ainda mais com o próprio Tsugaru narrando que tudo aquilo não passava de uma farsa, uma encenação para animar os populares. Isso me levantou uma série de ideias sobre a Era Meiji da nossa realidade, na qual o Japão passou por uma ocidentalização muito forte, com rápida industrialização e fortes avanços rumo ao militarismo.

Para além disso, nosso protagonista, Tsugaru, foi tornado híbrido pelas mãos de um europeu que fez experimentos humanos com o mesmo. Paralelamente, nossa deuteragonista, Aya, teve o corpo roubado pela mesma figura.

E enquanto essas ideias fervilhavam em meio a formação do nosso grupo principal, o episódio acaba, e eu já estou efetivamente fisgado, com isso temos o resto da série.

Homem ajoelhado em bairro japonês para maid ocidental na virada do século XX
O aspecto teatral é muito forte em Undead Murder Farce.

A estrutura de casos de Undead Murder Farce

Eu admito que demorei para entender qual que era dessa série. Com o piloto, acreditei que seria um suspense bem mais focado, mas então logo no segundo episódio temos uma quebra desse pensamento quando somos introduzidos ao primeiro caso.

Undead Murder Farce vai então se organizar em 3 casos durante essa temporada. Um primeiro caso envolvendo vampiros no leste europeu, um segundo caso de roubo em Londres e um terceiro caso de envolvendo lobisomens no interior da Alemanha recém unificada.

Eu não tenho um problema inerente com séries com um formato mais procedural. Inclusive nem disso dá pra chamar Undead Murder Farce, os casos estão sempre conectados com a narrativa geral da história. O meu problema é que falta ao menos um episódio de ligação entre o primeiro e o resto da série.

Não me fica muito claro sequer o motivo da Rindo Aya ter optado pelo ofício detetivesco. Tem uma pincelada aqui e outra ali que é por ela estar viva a séculos e ter visto de tudo, mas me parece pouco demais.

cena de Undear Murder Farce com Aya Rindo em frente a um relógio.
O momento clássico de histórias de detetive onde somos expostos ao crime como de fato aconteceu.

Detetive vs Ação

Isso posto, eu acho que enquanto Undead Murder Farce está fazendo uma história de detetive é quando o anime tem a maior oportunidade de brilhar. O Shinichi Omata continua se demonstrando um diretor de mão cheia, e aqui não é diferente.

Se tem algo que vimos da direção do Omata durante sua carreira é a habilidade do mesmo em construir cenas com diálogos longos sem perder o espectador. Isso é verdade em Showa Genroku Rakugo Shinju, é verdade em Kaguya-sama: Love is War e é verdade também aqui.

Por vir de uma mídia originalmente escrita, o anime se permite uma linguagem mais rebuscada, com brincadeiras envolvendo kanjis e um texto mais teatral e menos direto que dá a série uma textura bastante única.

Um pequeno momento de direção que eu gosto muito na série é logo na introdução do Sherlock Holmes, na qual, para passar ao espectador como o Sherlock pensa, a tela é particionada em vários close-ups simultâneos, demonstrando a habilidade do personagem de deduzir coisas à partir dos detalhes. Um diretor menos habilidoso teria feito a cena com ele expondo a dedução ou com monologo interno.

Já nas cenas de ação, a série perde muito, não que as lutas sejam todas ruins, mas perde muita personalidade em prol de poderes um tanto quanto genéricos. Os antagonistas dessa primeira temporada não ajudam muito também, mas já chego nisso.

Homem de cabelo azul socando lobo de pelagem amarela no focinho e raios saindo dos mesmos.
Como eu disse, não é que a ação seja ruim, só é bastante lugar comum.

O Banquete e a Royce

Durante essa primeira temporada, temos 2 grupos antagônicos principais, o Banquete, que é um grupo criminoso em busca de construir o monstro perfeito e a Royce, uma seguradora formada por humanos que querem exterminar todos os monstros.

Quando olhamos eles com uma lente macro, eles funcionam bastante para as ideias da série que irei abordar quando chegarmos na sessão com spoilers. O problema fica mesmo quando aproximamos um pouco a lente dos indivíduos que compõe esses grupos.

A começar pela Royce, o maior problema é que todos eles são completamente descartáveis. Somos apresentados a quatro agentes durante essa temporada, todos com o mínimo de caracterização possível. E quando chega no momento deles entrarem em ação fica tudo ainda pior, não apresentando risco real algum aos outros personagens durante os embates.

Já o Banquete é mais uma questão de potencial desperdiçado. O grupo é formado por vilões clássicos da literatura: Moriarty, o monstro de Frankenstein, Carmilla, Jack o Estripador. E por algum motivo o Alleister Crowley também faz parte do grupo. Todos esses vilões tem um potencial gigante e são aclamados por motivos bastante específicos, mas a série faz muito pouco com cada um deles. A Carmilla, por exemplo, poderia ser qualquer outra vampira que pouco importaria.

Undead Murder Farce tem bastante trabalho de casa em uma eventual segunda temporada para construir um embate de fato interessante.

Carmilla tenta morder maid de Undead Murder Farce
Mesmo que individualmente a Carmilla seja mais potencial que outra coisa, as duas cenas de embate entre ela e a Shizuku são ambas muito bem dirigidas.

Os detetives de Undead Murder Farce

E isso é especialmente verdade quando os detetives do anime tem muito mais nuance e desenvolvimento. Mesmo o Holmes consegue ser melhor trabalhado durante a série, e ele só aparece em um dos arcos.

Então, entrando um pouco mais nos personagens principais, podemos começar pela Hasei Shizuku. A Shizuku é a empregada da Aya e a fiel escudeira da mesma. Undead Murder Farce trabalha com uma estrutura cômica japonesa, com a Shizuku fazendo o papel do personagem sério escada para as piadas. Mas a série não se contenta em dar apenas isso para a personagem, primeiro construindo uma rivalidade com a Carmilla, mas mais importante dando a ela bastante destaque no terceiro caso. Foi bastante interessante ver a princesa de gelo ter uma conexão genuína com as vítimas da vila dos lobisomens.

Falando da Rindo Aya, ela é a mais misteriosa do trio, a mais distante, a que esconde mais o jogo. Aya está vive a quase um milênio e tinha como objetivo inicial que o Tsugaru que a matasse. Mesmo um imortal pode ser morto por um oni. Mas é só com uma proposta do farsante de ajudá-la a recuperar seu corpo que a mesma muda de ideia. Durante a temporada, temos muito pouco espaço para ver os pensamentos da Aya, só em momentos muito específicos aqui e ali ela deixa a máscara cair e mostra um pouco da menina dentro da criatura imortal. E só queria dizer que a imagética da gaiola para um ser condenado a viver eternamente é fantástica.

Mas talvez o personagem mais interessante dessa série seja o próprio Shinuchi Tsugaru. Tsugaru é um personagem que está sempre dizendo menos do que sabe. A grande farça dessa série é o Tsugaru, ele aprendeu durante o tempo em que exterminou yokais a engolir as próprias emoções. Tudo o que temos acesso é o personagem que ele construiu para seguir em frente, uma palhaço simplório e avoado.

O trio de protagonistas de Undead Murder Farce de frente pra uma câmera com cenário vermelho e rosa ao fundo.
Uma equipe disfuncional, mas muito bem equilibrada.

O positivismo da virada do século

Para entrar nos temas da série, eu vou inevitavelmente ter que entrar em terreno de spoilers, se você não assistiu ao anime, siga por sua própria conta e risco.

A segunda metade do Século XIX e começo do Século XX foi marcada por profundas mudanças sociais e na forma como as pessoas se organizam. Tivemos a 1ª Revolução Industrial, êxodo rural e uma modernização acelerada, dentre outros aspectos que não vale entrar tanto assim em uma review de anime.

O importante é que uma corrente filosófica específica ganhou força na Europa durante essa época, o positivismo. O Positivismo, dentre outras coisas, acreditava que o conhecimento científico era a única forma de conhecimento válido. Essa corrente filosófica também pariu, dentre outras coisas, o Darwinismo Social, teoria criminalista que hierarquiza as sociedades, com raças humanas melhores que outras e assim vai.

Dentro da série, isso pode ser visto em diversos personagens antagônicos. O Moriarty quer construir um humano perfeito misturando a genética de vários monstros; Já a Royce propõe uma limpeza étnica por meio do extermínio dos monstros; E mesmo dentre os monstros, a sociedade dos lobisomens pratica sua própria eugenia em busca do lobo perfeito, roubando das mulheres daquela vila o direito de escolha.

Mesmo o primeiro arco aborda a questão, o assassino daquele caso faz o que faz por se enxergar de uma raça superior aos humanos. Mentalidade muito em voga na época e que justificou tanto o colonialismo quanto os regimes fascistas europeus e japoneses.

Mãos extendidas aos céus de pessoas presas em gaiolas.
Os experimentos humanos buscando criar a entidade perfeita.

Undead Girl Murder Farce

A realidade é que Undead Murder Farce me deixou instigado durante toda a sua temporada, seja na condução dos mistérios, seja em como iria abordar sua temática espinhosa, foi uma série que prendeu até o último episódio.

Agora é aguardar se a série terá uma segunda temporada, se é que existe material para isso. Mas e você, assistiu Undead Murder Farce? Gostou? Diz pra gente o que achou aqui nos comentários.

Protagonista de Undead Murder Farce olhando de soslaio em imagem só com lineart.

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