Aquela Vez que Reencarnei Como um Slime

That Time I Got Reincarnated as a Slime ou apenas Slime é uma série de fantasia isekai. O anime conta até o momento com 36 episódios divididos em duas temporadas, com a segunda metade da segunda temporada marcada para estrear na temporada de verão de 2021. A série é uma adaptação da Light Novel de mesmo nome, ainda em lançamento. No Brasil, a série está disponível de forma oficial na Crunchyroll.

Sinopse: Minami Satoru, funcionário de uma megacorporação, é apunhalado por um assassino nas ruas e renasce num mundo paralelo… Mas ele renasce como um slime! Jogado neste novo mundo com o nome Rimuru, ele assume a missão de criar um mundo que seja acolhedor para todas as raças. (fonte: Crunchyroll)

Acho importante de dizer que esse texto não é uma review, tão pouco um primeiras impressões. Mas terminei recentemente a primeira parte da segunda temporada e senti que tinha coisas a dizer. Então encare isso daqui mais como um relato pessoal que qualquer outra coisa.

Antes de mais nada, quero estabelecer meus problemas com o subgênero de isekai e onde eu acho que o Slime acerta com isso. Não que todo meu carinho pela série venha apenas da justaposição com coisas que eu vejo falharem em outras séries, mas em parte é disso também. Eu tenho três grandes problemas com os isekais modernos: identidade visual, como a série encara seu protagonista e a construção de plot points.

Não acho que o isekai do Slime seja o exemplo perfeito de como remediar as três coisas, mas ao meu ver é um passo na direção correta ao menos, mas vamos por partes.

Identidade Visual

A primeira coisa que me pega muito, de uma maneira negativa, nessa enxurrada de isekais modernos é a identidade visual dos mesmos. Ou melhor, a falta de identidade visual. Eu não sei o quanto disso acontece pela forma como essas histórias são originalmente escritas e o quanto no processo de adaptação. Sendo bastante sincero, não me importo muito se venha de um, outro, ou ambos, a minha questão é com o resultado. E o resultado é uma grande massa de séries completamente indistinguíveis umas das outras.

Isso não é um problema só de isekais, sendo justo, existe um enrosco quase generalizado em histórias de fantasia baseadas em light novel de maneira geral. Parece que se você inverter os títulos entre pôsteres de duas séries quaisquer fica completamente impossível de dizer o que foi trocado e o que não foi.

Quantas vezes nos últimos anos você se encontrou com essa exata mesma série de fantasia? Eu já perdi as contas

E esse não é um problema só dos pôsteres, dentro da série também fica tudo absolutamente indistinguível. O goblin da série A reaparece na B, a cidade da série C é a mesma da D, E e F. É muito frustrante você pegar uma série que, em teoria, pode construir um universo do zero e ela só reutilizar o mesmo cenário desgastado de outras quatro.

Essa repetição sem fim não fica presa só a parte visual, mas mesmo assim acaba causando um grande sentimento de uma massa amorfa em que uma série emenda na outra e esse blob gigante vai ficando cada vez mais monstruoso. A repetição causa, ao menos em mim, uma gigantesca sensação que toda série é a mesma série, é quase como se tivéssemos um anime infinito, só que feito de pequenos pedaços diferentes apenas o suficiente para não configurar plágio.

Nesse cenário, Slime é um completo refresco visual. A série toma um cuidado bastante grande em entregar visuais bastante distintos, ainda que tomando emprestado o desgastado setting medieval. Em especial gostaria de elogiar muito o Mitz Vah pelo trabalho com os character designs. É quase como uma atualização para a lógica das light novels com o que o Akira Toriyama fez em Dragon Quest. Esses designs carismáticos ajudam muito na hora de nos conectarmos com os personagens, ao mesmo tempo que é um convite para a aventura em si próprio. Talvez as coisas possam ser diferentes em Slime, ao menos alguém pensando na estética do universo a gente possui.

Infelizmente não é um trabalho perfeito, o elenco humano é relativamente mais sem graça e algumas personagens femininas possuem designs indefensáveis. Sim, estou falando de você, Milim. Inclusive, nessa parte de design, a segunda temporada tem uma passagem de conto de fadas que é magnífica e eu realmente não estava esperando, mas ao mesmo tempo deixou o design da Milim ainda pior em retrospecto.

O Protagonista

Essa é uma parte que vai depender bastante do terceiro aspecto, mas vamos com calma. Eu tenho dois grandes problemas com protagonistas de isekai: o nível de poder e como a trama os encara.

Falando um pouco do primeiro, é um aspecto que Slime ainda derrapa um pouco. Meu maior problema com protagonistas overpowers é justamente o que o roteiro quer fazer com eles. O roteirista pode criar uma série de tipos de conflitos com personagens desse tipo, pode ser que ele seja overpower num cenário muito específico, ou pode ser que algo limite os poderes dele, ou que ele não possa agir por algum tipo de intervenção do roteiro. Um exemplo positivo do uso é o batido Saitama de One Punch Man, a tensão da série é criada justamente na ausência do personagem, no tempo até ele chegar para resolver. Outro exemplo é o Mob de Mob Psycho 100, cuja desvantagem é a instabilidade emocional do Shigeo ao lidar com os conflitos que o cercam. O One é mestre em lidar com esse tipo de personagem. Acontece que, de forma quase que contra intuitiva, ter um personagem muito poderoso é mais difícil de escrever do que um mais frágil. É o grande dilema de porquê não temos um jogo do Super-Homem e coisa do tipo.

Então o meu problema maior é que os roteiristas de isekai querem ter o conflito físico e o personagem overpower, ao mesmo tempo. Usando um exemplo do próprio Slime, em dado momento da primeira temporada ele enfrenta uma arraia gigante e é uma das coisas mais chatas do mundo. Em momento algum você tem dúvida que ele vá resolver o problema, não existe um risco, mesmo que mínimo, do Rimuru perder aquele combate, e o interesse no arco cai por terra. Não é surpreendente que esse foi o ponto que muita gente abandonou a série, por exemplo. Por sorte, parece que Slime aprendeu com esse incidente de percurso e começou a colocar travas mais interessantes no Rimuru. Os dois grandes conflitos da primeira parte da segunda temporada giram em torno dele conseguir chegar na cidade, e depois disso um conflito interno do personagem sobre o que fazer e o peso das suas decisões.

E isso nos leva ao segundo grande problema dos protagonistas de isekai, como a trama os encara. A maioria dos isekais não tem realmente um trabalho de caracterização do protagonista. Ele é mais trabalhado como o grande self-insert do leitor na coisa toda. Isso pode ter sido desencadeado pelo gênero estar muito atrelado aos video games, onde faz sentido deixar que o jogador se expresse através do protagonista silencioso, mas isso é papo pra outra hora. A questão é que é muito raro termos um protagonista de isekai com uma identidade realmente forte, e os que tem ainda são reflexo do leitor de alguma forma.

Essa escolha em si não é um problema. O problema começa quando o protagonista interage com o universo e o plot de vingança começa a acontecer. Por ser o próprio leitor, o protagonista raramente é questionado na sua rompante de atrocidades cada vez mais monstruosas. Muito pelo contrário, ele é encarado pela narrativa como moralmente justo e justificado, não importa quantas escravas tome para si, quantas vilas extermine, nem quantas chacinas cometa.

Já o Rimuru é um personagem muito mais próprio. Mesmo que sim, ele venha de um passado clichêzasso de otaku virgem arrependido, a série faz um trabalho bastante extenso de individualizar as ações dele. Seria algo muito mais próximo do que Re: Zero faz com o Subaru, do que algo do lado do Naofumi de Shield Hero. Claro que a série tem uma abordagem muito mais leve, mas ainda cabe a comparação. Isso faz com que nos momentos mais dúbios do personagem, a série se permita construir as cenas de forma a demonstrar que a atitude dele é de fato cinza, por vezes quase vilanesca, sem medo de alienar parte da audiência. E isso permite que Slime tenha um roteiro muito mais rico e menos apelativo para fatias não muito agradáveis da internet, digamos assim.

Plot Points

O terceiro ponto comum a muitos isekais que me incomoda é como ele constrói seu roteiro. Talvez por boa parte das histórias ter origem em sites amadores. Ou pela forma como são escritas, suas influências, mas a maioria dos isekais me tem um gosto muito grande de campanha de RPG. Digo isso no sentido de improviso da coisa, de conexões mal arranjadas e feitas as pressas por que o jogador decidiu cortar caminho, ou o mestre não se preparou o suficiente. Acontece que no terreno do RPG tudo vale, o importante não é a história, mas a interação dos amigos, o que vale é o fazer de conta do momento.

Mas os isekais carregam isso para histórias “de verdade” e eu acho simplesmente péssimo. Um sentimento enorme que o roteirista não tem ideia de pra onde quer ir e fica enchendo linguiça, só pra dar novecentas voltas no mesmo ponto e mudar de tom 30x numa temporada só. Um exemplo muito forte pra mim é o próprio Shield Hero, que começa super dark’n edgy pra três episódios depois ter corrida de chocobo e quest de fazer vestidinho pra um membro da party.

Pra além disso, os isekais sofrem muito da sensação do mundo procedural, aquela construção de universo capenga que vai brotando conceitos a medida que o roteirista vai precisando deles. Isso somado ao total descuido na construção do ponto a ponto, focando exclusivamente na virada bombástica, me dá uma enorme preguiça dos isekais.

Esse é o aspecto que Slime mais acerta. Eu não sei o quanto o autor modificou da versão amadora para a profissional, mas Slime me dá um senso muito grande que ele sabe pra onde está indo. Cada arco constrói um aspecto maior daquele universo, isso somado ao lado de construção de sociedade da série faz de Slime uma história muito recompensadora. Ver cada pequeno processinho da Tempest, da vila de goblins a gigantesca cidade comercial é absolutamente recompensador. E como ele precisa de tempo para construir a nação dos monstros, isso dá pro roteiro a liberdade de explorar seu elenco secundário e o universo aos pouquinhos, de forma muito mais orgânica. Claro que ainda existem momentos de completa conveniências, lendas que surgem do nada, monstros mega poderosos nunca antes citados, mas o conjunto geral é bom o suficiente para te fazer relevar os deslizes.

O Reino de Tempest

Com isso a gente pode entrar na minha parte favorita do Slime, a construção da sociedade dos monstros. Eu gosto demais como o roteiro trabalha toda essa questão. Slime é uma série levinha e otimista, isso faz com que toda aquela sociedade seja muito amável e faz o espectador torcer muito para que tudo dê certo.

O próprio Rimuru, por toda a personalidade easy going dele acaba sendo muito carismático, e com isso o processo de aglutinar pessoas é apenas natural. Uma ajuda aqui, uma outra acolá e de repente aquele monte de cabaninha de goblin já está abrigando alguns onis, depois alguns ogros, anões e até humanos. Ajuda bastante que os personagens do Reino Tempest são todos cheios de personalidade, e bem distintos entre si. O melhor que eu posso comparar Slime é com o trabalho do Inagaki na composição de elenco de Dr. Stone.

Esse processo lento e gradual nos permite ver a gênese daquela sociedade, suas primeiras relações comerciais, acordos militares e até mesmo mais recentemente os primeiros conflitos entre nações. E com isso temos um outro problema meio grande de Slime: os antagonistas.

Até agora, o único antagonista realmente interessante da série foi o Orc na metade da primeira temporada. Desde então, os inimigos maiores variaram entre os esquecíveis e aqueles que são maus que nem o Pica-Pau nos seus piores momentos. A série está afunilando para seu primeiro grande clímax contra um Lorde Demônio, e tudo que ele fez até agora em tela foi beber vinho e ficar maquinando numa sala a meia luz. Tudo bem que ele é dublado pelo Takehito Koyasu, mas ainda é muito pouco para o que deveria ser um grande vilão da série. O Reino de Falmuth em específico foi uma grande decepção minha nessa segunda temporada, todos os personagens absolutamente caricatos e maus demais para a grande decisão moral do Rimuru em se tornar um Lorde Demônio ter o peso que deveria.

Aquela Vez que Eu Reencarnei Como um Slime

Dito tudo isso, nesse texto ridiculamente gigante, o que eu quero dizer é: deem uma chance pra Slime. Ele tem sua dose de vacilos e imperfeições, mas pelo menos pra mim, todo episódio era um momento de descontração. Slime me ajudou a finalmente compreender o potencial que uma história de isekai pode trazer. Mesmo que não pareça de início, o Rimuru precisa ser um reencarnado para parte do arco do personagem fazer sentido, em especial com coisas abordadas na segunda temporada.

E acima de tudo, Slime me dá um sentimento muito forte de aventura e descoberta, com um elenco adorável e um tom divertido, que eu espero que não se perca com a guinada mais séria que a segunda temporada teve de tomar. Estou ansioso para a parte 2 da segunda temporada.

Deixe uma resposta