Em Terra de Personagem Vazio, Tate no Yuusha é Rei

Tate no Yuusha - Personagem furry vista de cima na chuva

Quando fiz as primeiras impressões de Tate no Yuusha, no começo da temporada passada, encontrei um primeiro episódio sem graça, com várias pitadas problemáticas em injustificáveis 40 minutos. Não esperava no entanto, que a obra desceria tanto daquele início. Fico quase nostálgico de tempos mais simples.

Tate no Yuusha no Nariagari, ou Rising of the Shield Hero, é a adaptaçãoda light novel homônima, escrita por Yusagi Aneko. A adaptação ficou por conta da Kinema Citrus, com direção de Takao Abo, tendo até o momento uma temporada de 25 episódios.

O começo torto de Tate no Yuusha

Para quem não conhece, uma breve sinopse. Tate no Yuusha é um isekai, que conta a história de Naofumi Iwatani, um japonês universitário viciado em light novel, que acaba indo parar em outro mundo. Simples, direto, clichê. Chegando lá, ele se descobre o herói do escudo, e sua vida degringola quando o mesmo é injustamente acusado de estupro.

E é exatamente aqui que os problemas de Tate no Yuusha começam, no episódio 1. Mais especificamente no primeiro episódio ser duplo. A primeira metade é uma longa exposição da lore do mundo de Tate no Yuusha. Chata, lugar comum e pouco orgânica, somos deixados no escuro enquanto personagens que sequer foram apresentados falam um milhão de termos que não nos dizem nada.

Depois de vinte torturantes minutos, somos então brindados, com uma das construções mais amadoras, com um golpe. No exato momento em que a Malty nos é apresentada, como uma pessoa linda, bondosa, que aceita se unir ao desprezado herói do escudo, já fica mais do que claro a existência de um plano por trás dos panos.

Mas Tate no Yuusha não se importa com sutilezas, e faz a personagem acusar o Naofumi de estupro. Aqui, principalmente numa revisita com mais contexto, as duvidas só aumentaram. Os quatro heróis são mesmo vitais para a derrota das ondas? Porque as pessoas odeiam o herói do escudo? Quanto poder o rei de fato possui? Infelizmente, são todas perguntas que, quando respondidas, só dão a sensação de que era melhor ficar sem saber.

Ainda tem um outro problema, a série, logo depois desse episódio, parece se envergonhar do artifício de falso estupro. Ou, num cenário ainda pior, faz pouco caso do mesmo. O assunto, nunca é tratado, por nenhum dos personagens “centrais” de maneira sequer próxima da adequada. O Naofumi, depois de se tornar herói renegado, que repito, para todos os outros presentes, havia estuprado uma princesa, passa a ser conhecido como um cara babaca, mas só. Mesmo que ele tenha recebido a alcunha de Diabo do Escudo, ele nunca de fato perdeu algo por isso. A narrativa tenta fingir que ele é o underdog, sem ter que lidar com as consequências dessa escolha.Herói do escudo, raphtalia e pombo gigante nos esgotos

Raphtalia, Filo, e a party de escravas

Tate no Yuusha parte então para uma tentativa desesperada. Justificar que o Naofumi só possui um jeito de sobreviver naquele mundo, através da compra de escravos. Só que essa premissa encontra um empecílho no próprio primeiro episódio: o Ferreiro. Apesar de tudo, sempre nos é demonstrada uma parceria entre o Ferreiro e o Naofumi. Isso já demonstra de forma mais do que definitiva, que ele não precisa de escravos.

Mas não é questão de precisar. Tate no Yuusha apresenta fortes traços de missoginia perpassando toda a temporada. E que fique claro, não importa se quem escreveu foi homem, mullher ou não binário. Não importa nem ao menos se foi proposital ou acidental. O fato, é que todas as personagens escravizadas são mulheres. Todas as personagens torturadas são mulheres. No frigir dos ovos, aos 45 do segundo tempo, na tão sonhada vingança do Naofumi, ele se vinga de duas pessoas o Rei e a princesa. O homem fez o que fez pela família, a mulher, por ser mentirosa patológica.

Para além disso, o relacionamento do Naofumi com toda sua party é, sendo muito bonzinho, de mal gosto. Raphtalia foi forçada a enfrentar seus traumas na base da tortura física e psicológica. “Se você não lutar, eu não poderei mais ficar com você” é uma fala de Naofumi para uma criança de dez anos, escrava e doente. E não seria um problema se a série tratasse a relação como problemática, mas muito pelo contrário, endoça em todos os momentos que consegue. Faz ainda mais, vende como “A” relação mais bonita da série, entre um cara perturbado e sua escrava. Em mais de um momento ele dá choques elétricos nela, “mas é pro bem da Raphtalia”.

O resto da party é, obviamente composta exclusivamente por mulheres (e crianças), estão lá pra serem tratadas de maneira… menos ruim. São o alívio cômico na maior parte dos momentos, mas não impede que toda vez que o Naofumi tenha um ataque de raiva, lá estejam elas, se ferindo pela fúria daquele adulto, porque no fundo ele é bondoso. Novamente nenhum questionamento é feito, elas amam o Naofumi incondicionalmente (inclusive, a Melty o ama de maneira romântica). Um lindo retrato de violência doméstica pintado nas entrelinhas, escondido o suficiente para que possamos fingir que não está lá.tate no yuusha - marca da escravidão na raphtalia

Tom caótico

Mas esse retrato romantizado não é o único problema no tom de Tate. O herói do escudo claramente não sabe o que quer ser, não sabe que história quer contar. Não sabe se será uma história sobre personagens cinzas com moral duvidosa, ou um slice of life em outro mundo. E nesse fio da navalha entre Berserk e Konosuba, acaba por seguir ambos, e nenhum. O personagem do Lanceiro é o que mais sofre com o problema de tom. Nos primeiros quatro episódios, foi construído como o oposto do Naofumi. Era pra ser o contrapeso da lógica torta da história. Arrogante, popular, julgando as pessoas baseado apenas num dos lados, esse era o personagem do Motoyasu.

Mas então os episódios vão passando, e o que era pra ser uma longa discussão começa rapidamente a ficar mais e mais vazio. A história vai mais e mais glorificando o Naofumi e utilizando do Motoyasu como objeto de escárnio. Ao mesmo tempo em que, sem motivo aparente, começa a inserir episódios de tretinha da semana entre os dois, com o Naofumi sempre estando correto e vencendo no final. A coisa degringola tanto que eu me sentia vendo a Gangue dos Robôs de Borracha, ou qualquer outra equipe “DU MAL” de desenho infantil.

Essa repetição com desfechos sempre iguais tira todo peso da dita vingança do Naofumi. Se ele já venceu a princesa 412 vezes, não sobra catarse para a 413ª. Além disso, ainda esvazia o sentimento de underdog, uma vez que ele é óbvia e claramente mais forte que o lanceiro, inclusive, isso só vai se acentuando, ao ponto em que na metade da temporada, os outros três heróis são virtualmente inúteis.naofumi e motoyasu disputam corrida montados em um dragão e um pássaro

Construção perdidaça

Acho importante vir aqui ressaltar a estrutura de Tate no Yuusha. Por ela simplesmente não existir. Se reparou que já estamos mais de mil palavras dentro da crítica e ainda não citei as ondas, é por elas não importarem mesmo. Começa a história, duas coisas são “construídas”, o desejo de vingança do Naofumi, e a iminência do apocalipse se aqueles personagens não deterem as ondas. Então temos um arco relativamente coeso de quatro episódios (apesar de ruim e de mal gosto, coeso), que termina com o Naofumi putaço no fundo do poço sendo resgatado pela Raphtalia. Depois temos uma virada de 180° no tom, introdução da Filó, varias missõezinhas filler que não constroem o mundo, não aprofundam os personagens, não conectam eles além de um mínimo. Chega o episódio 8 Naofumi puto, salvo pela Raphtalia.

Dai episódio 11 ele novamente fica puto, depois da introdução da Melty, e é salvo pela Raphtalia. Então no 20 mais uma vez, dessa vez sendo salvo pelas três garotas. Percebe como, depois do episódio quatro, a história entra num looping bizarro de, começa um arco, escudo da furia, descontrole, salvo ferindo as companheiras de party? Pois é, eu também notei.

E no meio desse looping, temos um dos mundos mais inconsistentes que eu já tive o desprazer de acompanhar. Os demihumanos sofrem racismo, ou talvez não. As pessoas odeiam o herói do escudo, ou talvez não. As pessoas temem o apocalipse ao ponto de invocarem heróis do outro mundo, mas ao mesmo tempo deixam eles no escuro. Além de menosprezarem o herói do escudo, por necessidade do roteiro, e não menosprezarem quando não precisa. É um mundo medieval, mas talvez não. A informação demora pra circular, ou talvez não. É um matriarcado, mas toda posição de poder é ocupada por homens.

Eu poderia continuar a lista, alguns problemas são nitchpicking meus, outros buracos graves. O grande problema, é que uma vez que você repara, o roteiro começa a se desfacelar na sua frente. O mundo funciona como um jogo quando é conveniente, mesmo que o Naofumi diga, mais de uma vez, que os outros heróis estão errados por tratar como um.Filo e Raphtalia sorrindo

Ninguém se conecta com nada

Mas, no final das contas, os erros de estrutura seriam absolutamente passáveis, se Tate no Yuusha compensasse nos personagens. Pena que nem de longe é o caso. Acho interessante uma observação que vi no Twitter, sobre como na época de Re:Zero, a Crunchyroll também inundava de propagandas da série. Naquele contexto, sempre postava imagens pra gerar discussões, seja sobre o caminho que o roteiro iria tomar, seja sobre os personagens. Com Tate no Yuusha as postagens se resumem a dizer que a Raphtalia é fofa.

Claro que era um exemplo mais exagerado, mas serve muito bem pra demonstrar como o elenco de Tate no Yuusha é fraco. A Raphtalia é um passado triste de escravo, depois ela decidiu ser a espada do Naofumi, e o personagem morreu ali, no episódio 4. O rei é uma caricatura de vilão, o mesmo pra Malty, a mentirosa patológica. O Motoyasu, é o objeto de escárnio do roteirista. Arqueiro e Espadachim sequer foram apresentados direito, mesmo depois de 25 episódios. A Filo é um alivio cômico, e come muito. A Melty, tem uma tentativa de forçar o quanto ela mudou ao conhecer o Naofumi, mas não sinto a menor diferença, por sequer saber definir a personalidade dela.

Isso fica muito claro em diversos momentos, como o da fogueira, quando o Naofumi cozinha pros chocobos. Ou na festa, mais recentemente. Fica claro porque a história decide cortar as falas, e fazer uma montagem dos personagens interagindo. Porque o roteiro não sabe o que fazer com esse elenco vazio e sem alma, que parece ter vindo de um gerador aleatório. Os personagens de Tate no Yuusha são, quando muito, um design genérico.

Mal existem motivações para qualquer um deles que não seja o Naofumi, e isso fica mais do que claro, quando a Malty fodeu ele no começo da temporada, simplesmente por ser má.Tate no yuusha - o pseudo harém do Naofumi

Tate no Yuusha . Gif

Falando em design, nossa! Como Tate no Yuusha é sem sal. De poderes a monstros, ambientes a personagens, não existe nenhum aspecto no visual do anime que o diferencie realmente de outra fantasia qualquer encontrada num Deviant Art mediano. Digo, a única característica realmente marcante é a combinação capa verde com escudo. De resto, um marasmo sem fim.

E isso não impede da falta de coesão visual saltar aos olhos. Mesmo dentro do grupo, a fórma pássaro da Filo não conecta com mais nada. Todo resto do design do “bestiário” tenta puxar pro realista enquanto ela é uma tentativa fracassada de mascote. E não é como se isso não fosse feito em outros lugares aos montes, como exemplo posso citar a franquia Shin Megami Tensei, com monstros que variam muito de estilo. Mas é essa a questão, monstroS, aqui, é um único personagem destoante dum resto, razoavelmente semelhante.

Para além disso, temos o terrível uso de CG, de baixíssima qualidade e que sempre salta aos olhos. Não seria problemático se a megalomania do roteiro não amasse fazer monstros gigantes, que são sempre animados em CG. Eles são duros, muito bizarros, e parecem destacados do resto do ambiente.

Falando em “momentos catarticos” toda identidade visual das Ondas é simplesmente horrorosa. Aquel céu vermelho com uns turbilhões em fumaça verde machucam os olhos. A decisão do mangá de fazer como se tivesse trincado a realidade e os monstros escapassem por uma fenda é muito mais elegante, e faz mais sentido dentro da trama.

Ainda no quesito visual, temos os combates, ah os combates. Variam de um começo promissor, com um uso criativo dos poderes no começo da série. Ao mais absoluto marasmo de um tokusatsu baixo orçamento em todo o resto. Coreografia absolutamente inexistente. Zero esforço na elaboração de golpes. Sério, o poder fodão do Espadachim? Espada meteoro. Do Arqueiro? Flecha meteoro. Do Lanceiro? Lança Meteoro. Eu queria estar fazendo piada aqui, mas tem um momento em que um personagem usa uma grande magia com nome complicado, e a outra vence usando a ANTI magia com o nome complicado. Parece brincadeira de criança, mas é uma história que se leva a sério.céu vermelho com detalhes de rodamoinho verdes, representação das ondas

Promessas de um futuro esquecido

Mas, você passou por duas mil palavras agora, eu te parabenizo. E como recompensa, talvez, lhe ofereço o que achei de positivo de Tate no Yuusha. Não sem antes reclamar mais um pouco. Todo o grande arco narrativo dessa primeira temporada de Tate no Yuusha se resume a um coisa. Limpar o nome do Naofumi. É uma história batida e simples de falsa acusação, com os agravantes da missoginia, mas já falei disso. A questão é que, esse arco acaba (mal e porcamente) no episódio 21.

Sim, você não leu errado, o arco da temporada acaba 4 episódios antes da temporada acabar. Isso me fez questionar muitas coisas, dentre elas se existia alguém cuidando do Series Composition desse anime. Existe. Por que ele não limpou parte dos episódios inúteis e fez essa catarse no episódio 12-13? Não sei. Ou então colocasse mais episódios inúteis e empurrasse o episódio 21 pro 25. Acabasse a temporada no 21. Qualquer dessas opções seriam muito mais aceitáveis que a utilizada, simplesmente ir adaptando até dar 25 episódios, daí só acaba.

É amador num nível que machuca. De qualquer modo, a partir do episódio 23 ele começa mais um grande arco, e é daí que surgem as duas únicas coisas interessantes de todo Tate no Yuusha. O Herói da Foice, e sua companheira.

L’Arc Berg, ou o cara da foice, por mais que não tenha tempo de respirar ao ser apresentado aos 45 do segundo tempo de uma história que já acabou, é interessante. Ele tem motivação, tem uma parceira que fala, interagem, tem uma boa piada e um poder criativo. Para além disso, a rivalidade dele com o Naofumi é muito melhor do que a construção de relacionamento feita entre quaisquer outros dois personagens.

É bem escrito? Não, isso ainda é Tate no Yuusha. Ele ainda é claramente um inimigo no exato momento que entra em cena pela primeira vez. Eles ainda interagem pouquíssimo e já formaram um vínculo por falta de habilidade na construção de diálogos. Mas ainda é algo, nem que uma promeça que ficará esquecida pelo anime estar muito mais interessado em trabalhar a cena de praia do Naofumi e seu harém.L'arc dando risada

Acabou, por favor não volte Tate no Yuusha

Essa crítica ficou gigante, mesmo assim não esmiussei muita coisa. Propositalmente nem entrei nos detalhes dos arcos menores, como o ex-dono da Raphtalia ou a Igreja do mal. Não o fiz por dois motivos: o primeiro, por não importar. Nenhum desses arcos de fato desenvolve personagem nenhum, nem as relações entre eles, são uma longa enrolação até chegar nos pouquíssimos momentos relevantes. O segundo motivo, é por que entrar nesses arcos implicaria ficar repetindo reclamações de outros.

O que eu quero deixar claro, é que Tate no Yuusha é muito mal escrito, as coisas nâo fazem sentido, ele cria mistérios sobre o mundo dele com tanta frequência que se torna ininteligível. Existe todo um subplot de política, que eu gostaria de ter me importado, mas o roteirista achou interessante demais para me mostrar, e guardou só pra ele.

Enfim, depois de mais de 2500 palavras, me sinto livre para dar meu adeus a Tate no Yuusha. Pedir que não volte para uma segunda temporada. Dizer a você, caro leitor, que se quer um isekai que não vai apenas gastar o seu tempo, veja Slime.

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