Urusei Yatsura: Beautiful Dreamer e a Recusa da Mudança

Urusei Yatsura Beautiful Dreamer - Capa do texto

Urusei Yatsura: Beautiful Dreamer é o segundo longa da franquia, lançado no Japão em 1984. O filme é uma produção do Studio Pierot, contando com roteiro e direção do sempre excelente Mamoru Oshii, que já apareceu aqui tanto no podcast Anime Secreto de 2021, quanto em uma review do filme de Patlabor e até mesmo em um ensaio sobre Angels Egg. Urusei Yatsura: Beautiful Dreamer é baseado no mangá de autoria da Rumiko Takahashi, conhecida por Ranma 1/2 e InuYasha. O mangá de Urusei Yatsura permanece inédito no Brasil.

O Colégio Tomobiki está em frenesi para finalizar os preparativos do festival escolar. Cenários precisam ser construídos, figurinos costurados e quem sabe em algum lugar, até uma soneca precisa ser tida. Ataru, Lum, Shutaro, Shinobu e o restante da Classe 2-4 estão determinados a serém o destaque do ano, correndo para os preparativos finais. Nosso grupo de protagonistas estão acampando na escola para que no dia seguinte chegue o tão esperado evento. Ou seria no depois desse? Talvez daqui a 3 dias? O tempo realmente é um negócio convoluto quando a gente se diverte. Ou algum vórtice engoliu a Classe 2-4 num verão eterno de nunca crescer?

Urusei Yatsura 2: Beautiful Dreamer - Elenco enfileirado
A grande trupe de Urusei Yatsura

A “normalidade” de Urusei Yatsura: Beautiful Dreamer

Minha experiência com esse filme foi um tanto curiosa. Urusei Yatsura é um dos colossos dos anos 80, mas por uma série de fatores, é uma franquia que eu nunca encostei um dedo sequer. Dito isso, sempre soube o quanto o segundo filme, Beautiful Dreamer, foi um marco pra época. Ele é sempre citado como um dos grandes filmes de animação, e foi a porta de entrada de muita gente para a mídia, nos anos 80-90.

Sempre me foi dito também como Urusei Yatsura: Beautiful Dreamer poderia ser visto sem conhecimento prévio da série. E isso é, em partes, verdade. O primeiro ato do filme faz um trabalho bastante decente de apresentar o elenco, pelo menos os personagens que vão importar. Mas ainda assim, existe um certo sentimento de estranheza, de estar entrando em uma festa pela metade onde todo mundo já se conhece. Ajuda muito o fato de os personagens serem simples e bem demarcados, mas sinto que ter conhecimento pelo menos mínimo te faria ter uma experiência mais suave.

De qualquer forma os personagens que importam são 4: Ataru, Lum, Shutaro e Sakura. O Ataru é nosso protagonista, a personalidade dele gira em torno de ser lascivo, preguiçoso e burro. A Lum é uma oni alienígena que está prometida para o Ataru, sendo definida por sua doçura e inocência. O Shutaro é um herdeiro que é obcecado com militarismo, além de apaixonado pela Lum. E a Sakura é a enfermeira da escola e medium nas horas vagas, funcionando como o personagem mais racional do elenco de abilolados. Com essa descrição fica um pouco mais tranquila a entrada no filme.

Então o filme começa com a Classe 2-4 transformando sua sala num café. Mas não em um café normal, e sim num café temático da Alemanha Nazista, com direito a tanque de guerra e tudo mais. Claro que o cabeça por trás do café é o Shutaro, só que quando não se tem contexto do elenco, devo admitir que foi um choque considerável.

Urusei Yatsura 2: Beautiful Dreamer - Garoto viaja na noite dentro de veículo de combate
Ataru e Shutaro passeando pela cidade vazia.

Uma cidade sem ninguém

A normalidade não dura muito, e logo somos levados a um passeio pela cidade com o Ataru e o Shutaro. Aqui o filme já começa a trabalhar muito com planos longos de uma cidade vazia. Isso embalado pela trilha incrível desse filme vai construindo, paulatinamente, uma atmosfera melancólica. E é aqui que a história realmente começa.

Um detalhe de cada vez, um figurante por vez, pouco a pouco o Mamoru Oshii vai tirando os elementos “desnecessários” para essa história. Primeiro os transeuntes no colégio, depois os alunos sem rosto, então somem os carros nas ruas, as luzes nos prédios, e a solidão se instaura cada vez mais. Somado a isso, elementos surreais vão cada vez se tornando mais presentes. Um quarto lotado de mofo aqui, uma poça que engole as pessoas ali.

O clima de comédia vai dando lugar, gradativamente, a um ambiente muito mais intimista. E aquela cidade, antes tão cheia e aconchegante, agora parece muito mais uma prisão a céu aberto. O ápice disso acontece quando os personagens, percebendo sua própria desgraça, tentam forçadamente ir para casa. É assim que eles percebem que sair da cidade se tornou impossível por terra, no maior estilo Uzumaki ou terceiro filme de Madoka Magika. Ambas obras posteriores, diga-se de passagem.

Os nossos protagonistas decidem então usar o caça do Shutaro, para escapar por ar, e é nesse momento que a realidade se rompe de vez.

Urusei Yatsura 2: Beautiful Dreamer - Cidade nas costas da tartaruga
A cidade prisão viajando pelo espaço nas costas da tartaruga.

Um sonho de verão eterno

E é então que o filme dá uma virada interessante. Ao descobrirem que estão em uma prisão em cima de uma tartaruga, a realidade fabricada deles deixa de se esforçar para parecer real e rui completamente. Chega o apocalipse e “por sorte” apenas a casa do Ataru recebe luz, e a loja de conveniência continua sendo abastecida, apesar das pessoas terem desaparecido completamente.

Mas o nosso elenco não se deixa abater por isso, e decide se divertir nesse verão eterno, aproveitando cada dia sem se importar com o próximo. A única divergência no grupo fica por parte do Shutaro e da Sakura, que ainda querem escapar dali. Mas as coisas não ficam como estão, e logo personagens nomeados também começam a desaparecer. Sempre parece que os personagens que somem são aqueles que não são considerados necessários para o status-quo se manter. E essa é a palavra chave aqui, status-quo.

Esse filme é muitas coisas, dentre elas, ele é um encerramento de ciclo pro Mamoru Oshii. Urusei Yatsura é uma série episódica, na qual uma semana a escola pode explodir, para na outra ser uma aventura espacial e na terceira uma gincana esportiva. Ao mesmo tempo em que inexiste um status-quo padrão, inexiste uma quebra dos arquétipos dos personagens. O Ataru vai ser sempre o tarado. A Lum sempre vai ser apaixonada por ele e ter ciúmes das outras meninas. O Shutaro sempre vai ser o psicopata obcecado com guerra. Esses personagens estão fadados a repetir seus papéis infinitamente, sem nunca quebrar o molde, e é com isso que esse filme brinca.

Do lado de fora da franquia, ele também vai abordar muito sobre o desejo e a recusa. O desejo que nada mude, e a recusa ao crescimento, é isso que prende os personagens nesse looping de verão eterno. E esse é o sonho de algum dos personagens, servindo de alimento para o Mujaki, um demônio dos sonhos. Mas para falar sobre esses assuntos, é importante dar o aviso de spoiler.

Lum olhando o aquário
Solidão num aquário vazio

Urusei Yatsura: Beautiful Dreamer

O Mujaki é uma criatura que existe desde os primórdios da humanidade. Ele existe para trazer os sonhos das pessoas a realidade. O Mujaki é um personagem trágico, ele só pode existir dentro dos sonhos das pessoas, mas a sua própria existência faz com que os sonhos cresçam e se corrompam, com a pessoa no processo. O demônio quer então encontrar alguém com quem ele possa fazer sonhar para sempre, e habitar esse sonho para sempre. E é assim que ele descobre a Lum.

A Lum tem um sonho simples, que os dias que ela gosta, vivendo com quem ela ama, nunca acabem. Um sonho que, eu tenho certeza, todos nós já tivemos em algum momento. Aquelas férias que deviam durar mais um dia. Ou aquela tarde especial, que podia durar uns minutos a mais. Mesmo aquele momento pequeno, do cotidiano, que passa e se esvai num piscar de olhos.

Mas ficar tudo igual, tudo estável, requer sacrifícios. Então removemos as pessoas que podem quebrar esse status-quo, uma por uma. Depois condenamos a uma rotina excruciante aqueles que são completamente indispensáveis. Como uma série episódica que não avança, nos prendemos aos moldes do instante, e assim, o sonho se torna uma prisão.

Prisão essa que só é quebrada por alguém com um sonho ainda mais insaciável, o Ataru, que quer amar todas as mulheres do mundo. Ele negocia com o Mujaki para que o demônio também realize os seus desejos, mas abandona o acordo quando ele não pode ter a Lum em seu harém. “Um harém sem a Lum não tem sentido.” Afirma Ataru para o demônio, que replica dizendo que ele sempre foge da Lum.

O demônio então joga o Ataru num looping de pesadelos, que vão ficando cada vez mais bizarros, ao mesmo tempo que relembram momentos icônicos da série de TV. Para escapar o Ataru precisa gritar o nome da mulher que ele mais quer ver. Depois de muitas voltas, o Ataru finalmente é sincero consigo mesmo, e grita: “Lum!”

Urusei Yatsura 2: Beautiful Dreamer - Competição de corrida, garoto tarado rouba sutiã da oni alien
Cena icônica do primeiro episódio, quando Lum e Ataru se conhecem, reproduzida no filme.

Um adeus para Urusei Yatsura

E é assim que o Mamoru Oshii se despede de Urusei Yatsura. Se despede dessa história episódica sobre um amor que nunca é confesso com um beijo não dado, numa sala de aula que os fãs da franquia conhecem decor. Apesar de o beijo nunca vir no filme, não existe mais um ponto de retorno, aquele verão eterno acabou, e as relações congeladas serão obrigadas a seguir em frente.

Dentro ou fora da metalinguagem, é um final muito forte e muito bonito o de Urusei Yatsura: Beautiful Dreamer. Fora mensagens e roteiro, é impressionante a quantidade de técnicas e acontecimentos que o Oshii consegue espremer em 1h30 de filme. O sentimento que eu saí dele foi de ter concluído uma longa jornada, com personagem que eu já conhecia a muito tempo, mesmo que os tivesse vendo pela primeira vez.

Garoto quase beijando garota oni
A promessa de um beijo que nunca veio.

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