Deca-Dence: O Mundo Precisa de Bugs – Review

Deca-Dence é um anime original de 12 episódios da temporada de verão de 2020. Dirigido por Yuzuru Tachicawa (Mob Psycho 100, Death Parade) e series composition por Hiroshi Seko (Vinland Saga, Banana Fish), é uma produção do estúdio Nut (FLCL: Alternative, Youjo Senki).

Sinopse: Muitos anos se passaram desde que a humanidade chegou a beira da extinção. Desde então o pouco que sobrou dela se abrigou no forte móvel chamado Deca-Dence. Os moradores permacem em constante estado de alerta, enquanto enfrentam as ameaças desconhecidas conhecidas pelo nome de Gadoll. Um dia, Natsume, uma garota que sonha em ser caçadora se encontra com Kaburagi, um antigo caçador que deixou o passado para trás, e à partir daí tudo muda no forte cidadela…

Deca-Dence é uma pérola dentro do saco de desgraça que está sendo esse ano. Muito se diz sobre como a indústria de anime vive basicamente de adaptações feitas em linha de montagem, como tal é simplesmente sensacional ver um estúdio pequeno se arriscando numa produção original.

Essa escolha não vem sem seus cortes, e Deca-Dence sabe quais as batalhas que quer travar. Como resultado temos um CG ruim e bastante planos estáticos, mas que são manobrados de forma magistral pela direção.

Mesmo assim a série ainda entrega vários momentos de hype. Principalmente contando com a trilha sonora que é empolgante e bem pontuada. A direção trabalha muito com a parte sonora para gerar no espectador o sentimento que ela quer para cada cena. Isso suprime a necessidade de uma animação de ponta no momento a momento. Mesmo assim, nos grandes pontos de catarse, Deca-Dence arrisca tudo em várias tomadas lindíssimas, sempre deixando quem assiste como agente ativo do campo de batalha. A direção nunca deixa o espectador confuso quanto a os ‘onde’s ou os ‘quando’s das set pieces, mesmo nos momentos mais caóticos.

E se a série não tem o suprassumo dos valores de produção, ela compensa com design. Dos monstros, aos personagens, tudo em Deca-Dence é muito próprio e autoral. Num mar de obras de fantasia com estética aguada, Deca-Dence é um bote salva-vidas muito bem posicionado. Um destaque especial para os Gears, principalmente quando em seu habitat natural, por assim dizer.

E falando do elenco, Deca-Dence tem uma das relações mais bonitas que eu vi esse ano, em qualquer tipo de mídia. A conexão do Kaburagi com a Natsume, de mentor e aprendiz, depois quase paternal, é o coração e a sustentação da série.

Não é uma ideia inovadora, muito longe disso, esse tipo de história existe aos montes. Mas o controle de ritmo e a habilidade do Seko nas interações elevam essa relação a muito mais do que ela poderia chegar em doze episódios.

A Natsume é o clássico personagem esperançoso e com fome de viver. Já o Kaburagi é o herói derrotado, que foi engolido e quebrado pelo sistema, sobrando não mais que uma casca vazia. Justamente por isso é tão bonito e reconfortante ver a influencia que a garota traz para ele. Ver a vida sendo preenchida de volta (as vezes literalmente) no Kaburagi. Ver ele encontrando um propósito para levantar mais uma vez, e seguir em frente.

Num âmbito mais temático, Deca-Dence trabalha muito sobre esse contraste, sobre essa oposição entre os fatalistas e os idealistas. A série vai se dividir entre personagens que estão completamente conformados com o status quo e aqueles que querem quebrar com tudo.

Por muitas vezes um personagem anteriormente fatalista acaba contagiado pelos ideias de outro, se transformando no processo. É impressionante a habilidade do roteiro em fazer com que toda vez que isso acontecesse, fosse impactante e significativo para o todo tanto quanto no microcosmo.

Mas eu já enrolei demais, então chegou a hora de entrar em spoilers dessa série, para entrar nas discussões da mesma e fechar essa review. Se não assistiu Deca-Dence, pare agora, vá lá, e volte quando terminar. Eu fico esperando…

Eu gostei de Deca-Dence desde cara, mas eu tive certeza que ela seria um troço especial justamente quando temos a primeira virada e revelação dos robôs. Toda essa ideia de sociedade altamente estratificada e baseada em regras não é nem de longe novidade.

Mas pegar e fazer um Westworld as avessas me pegou completamente no contrapé. Justamente porque é aqui que toda a ideia do Deca-Dence toma forma. Deca-Dence é na verdade o nome do jogo que mantém os robôs entretidos.

Também é através do Deca-Dence que o Sistema recebe o combustível para se manter funcionando. Dessa forma o entretenimento gera o alimento daquele sistema opressor, um pão e circo literal. Ao mesmo tempo que é um jogo, o Deca-Dence também é claramente uma representação da caça esportiva e do safári.

Temos assim uma sociedade em forma de pirâmide, baseada na competição e degradação dos outros. Uma desculpa inicial para esse sistema é a ideia de proteger a humanidade, mas fica bastante evidente que nenhum robô se importa com a humanidade, menos o Kaburagi.

O Kaburagi foi sentenciado a se tornar um caçador de bugs. Ele os encontra, os reporta e, posteriormente, os coleta. Numa virada do seu destino ele dá de cara com a Natsume, uma jovem sem um dos braços, um bug.

Natsume tem um motivo narrativo para ser um bug. Mas num olhar mais temático, ela é um bug por não ter todos os membros. É muito claro (e um tanto óbvio) que um sistema focado no controle não pode ter espaço para o diferente. Não é acidental que o avatar do sistema seja um ser velho, quadrado e cinza. Qualquer um que desvie da norma precisa ser eliminado, o mundo precisa se ver livre dos bugs.

Mas o Kaburagi acaba se afeiçoando pela garota. E depois acaba treinando-a. Não demora muito para a garota se destacar nas linhas de frente. Com isso fica claro que a situação atual é planejada, mais do que isso, fica claro que os bugs não são o problema que aparentam ser. Ao mesmo tempo o próprio Kaburagi se beneficia de conhecer outras perspectivas, de lidar com o diferente. Todo o crescimento do personagem se dá justamente nesse contato.

E a Natsume, nosso bug, segue interferindo e moldando aquela sociedade, um passo de cada vez. Uma coisa que eu aprecio é a própria personagem perceber que tudo que ela queria era mudar a si própria e ter um pouco de auto-estima.

Deca-Dence toma bastante cuidado para mostrar como todos a volta dela a tratam como menos capaz. Isso não vem de uma ideia de desdém, mas seja a amiga dela, seja o próprio Kaburagi, ficam tratando como se ela fosse frágil demais para saber o que quer. Uma passagem que exemplifica bastante isso é a invasão dos Gadolls na parte da favelona que os humanos vivem.

Aquele é o ponto em que o Kaburagi tem o maior choque de realidade da série, o ponto de virada para a revolução. Ele se encontra com uma Natsume emocionalmente exausta, mas agora ela já é uma guerreira completa. Quando a garota declara o desejo de ser mais forte para proteger o universo dela, é quando o Kaburagi quebra. Ele quebra por saber que tudo é uma mentira, por fazer parte da mentira, e por ter a chance de tornar em verdade.

Como a ideia desse texto é ser uma review, não um resumo, vamos para os finalmentes. Existem ideias no encerramento que eu gosto, outras nem tanto. A começar pelos pontos negativos então: o Gadoll gigante.

Não que a ideia em si seja exatamente ruim. Pegar justamente o ser que está na base da pirâmide, utilizado literalmente como combustível, e construído desde o seu nascimento para ser entretenimento e comida e usar ele como o ser mais poderoso é uma boa ideia. Acontece que Deca-Dence tem doze episódios, e esse plot acaba ocupando um espaço que poderia ter sido dado para a insurgência da humanidade. No final, mesmo que eu goste desse olhar otimista, ficou um pouco bobo e corrido demais a união entre robôs e humanos.

Ainda mais pensando na passagem do episódio final, em que o sistema declara que ele próprio cria os bugs, para que assim consiga se desenvolver. É mais uma camada do sistema criando artificialmente os próprios problemas, só para ter uma desculpa para poder exercer sua autoridade e controle. Mas daí o sistema meio que só desiste e some do plot.

Já a parte que eu gosto desse final (fora todo o espetáculo visual e os momentos Row Row Fight The Power) é justamente o pós time-skip. Nele vemos uma sociedade harmoniosa, em construção de um futuro melhor. Os gadolls foram integrados, os robôs desceram da sua redoma, e a caça foi substituída pelo esporte. Também fica claro que não foi abolida uma ideia de sistema, mas um muito mais inclusivo foi posto no lugar. O mundo precisa dos diferentes no final das contas.

Eu ainda tenho uma série de pequenas coisinhas que gostaria de falar. Sobre como todo o sistema prisional não tem nenhuma intenção de reformar aquelas pessoas. Falar sobre como mesmo no fundo do poço ainda tem quem siga cegamente o sistema. Sobre como um sistema criado para oprimir nunca vai resolver problema nenhum, mas o review já está longo demais e isso levaria mais umas centenas de palavra.

Me basta então dizer para que assistam Deca-Dence, certamente é um dos melhores animes que saíram em 2020. É uma série com muito o que dizer, mas também é uma série com muitas ideias refrescantes. Com um universo rico, um elenco carismático e uma trilha sonora sensacional. Um novo clássico esperando para nascer.

E você, assistiu Deca-Dence? Gostou? Odiou? Diz aí o que achou e, claro, qual a próxima série que deve aparecer por aqui.

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