Cemitério dos Vagalumes

Mais um final de mês, mais um filme da Ghibli aparece em nossa longa aventura. Dessa vez, no nosso terceiro mês, temos o primeiro filme não dirigido pelo Hayao Miyazaki, Cemitério dos Vagalumes. Cemitério dos Vagalumes foi dirigido por Isao Takahata (Only Yesterday, Os Yamadas), baseado no livro homônimo e semi autobiográfico, escrito por Akiyuki Nosaka.

Cemitério dos Vagalumes estreou nos cinemas japoneses em abril de 1988, em uma sessão dupla com o já citado Meu Vizinho Totoro, reza a lenda que para compensar a carga pessimista do longa.

Uma fotografia crua de seu tempo

Cemitério dos Vagalumes não é uma experiência fácil. Muito pelo contrário, parece conscientemente se esforçar para empurrar o espectador para longe. A paleta de cores amarronzada, os traços mais realistas, a trilha quase totalmente melancólica. Existe um sentimento de opressão, de não pertencimento, de vazio e de solidão.

O sentimento não poderia ser mais condizente com a narrativa. Cemitério dos Vagalumes é um filme de guerra. Um dos mais secos e niilistas filmes de seu gênero. E ele o faz sem um disparo de arma de fogo, sem um fronte de batalha, sem um soldado.

A escolha, em parte por ser autobiográfico, em parte narrativa de observar os civis em sua totalidade, traz um sentimento muito mais angustiante. Principalmente com o tempo em que vivemos, com as guerras se tornando cada vez mais desumanizadas, acaba se perdendo o sentimento das vidas perdidas. É apenas um drone abatendo seu alvo.

Então, somos jogados para acompanhar a história dessas duas crianças, Seita e Setsuko. Dois filhos de um oficial da marinha japonesa, algo bastante importante, mas que volto depois. 

Enfim, somos apresentados aos dois personagens, numa cena de bombardeiro, que destrói completamente a cidade onde moram. No meio do bombardeio, a mãe dos garotos é queimada e não resiste.

Um lugar para pertencer

Uma questão que pegou bastante nessa reassistida de Cemitério dos Vagalumes, foi o quesito social que o filme aborda. E ele o faz desde sua primeira cena. O Seita, moribundo e jogado as traças numa estação de trem, morre sem ninguém se importar, como se não fosse diferente de entulho. Junto dele, uma infinidade de outros órfãos, também jogados ao relento, esperando seu momento de morrer.

Não morrem de fome, mas por abandono da sociedade, que se tornou tão dura ao ponto de ignorar um adolescente faminto. Ainda bem que não temos mais isso hoje em dia.

Enfim, imediatamente quando ele é enviado a casa da tia distante, fica claro que ela não os vê como família. Os vê como dever. Razoavelmente calorosa quando os garotos têm algo para trocar. Primeiro as comidas estocadas, depois os kimonos, e então o estorvo.

A relação claramente começa a se deteriorar quando o Seita conta para a tia que a mãe dele está morta. O que antes era uma situação temporária, passa cada vez mais a parecer perene. E, diante do racionamento, ela escolhe o que parece mais lógico, a própria família, ao invés desses órfãos sanguessugas.

Acho muito interessante observar que a tia não possui um nome. Isso acontece por não existir uma pessoalidade. Ela não é um personagem per se, ela representa aquela sociedade. É um retrato dos adultos daquela época, que vêem dois órfãos saindo da sua casa rumo ao desconhecido, e desejam boa sorte, uma boca a menos para alimentar.

Também representa a falta de um laço entre as duas crianças e aquela família. Eles nunca pertenceram, apenas foram despejados naquela casa, como um adereço, uma visão de status mais elevado, afinal, eram filhos de um oficial.

O orgulho imperial

“O papai vai nos vingar” é a frase que quebra o silêncio das bombas no começo do filme. Seita quem a diz, enquanto observa o horizonte em brasas. Seita é uma criança cheia de ódio, claramente lobotomizada através da escola. O Japão Imperial era terrível e sanguinário, se via como o povo escolhido, cometia as maiores atrocidades no fronte oriental.

É claro que o filho dessa máquina de guerra não simplesmente trabalharia na cidade. Ele faria munições numa fábrica. Iria para o fronte. Era o filho de um oficial afinal de contas.

Durante todo o filme nos é pincelado essa personalidade orgulhosa do Seita, tocando e cantando marchas de guerra, lendo quadrinhos de propaganda, vendo nos barcos um desfile marcial. Isso não deixa menos trágica a jornada dele ao inferno, muito pelo contrário.

Quando o grande orgulhoso filho do oficial se rebaixa ao ponto de roubar comida. Quando o inimigo que lança bombas pelo céu para de representar o medo e se torna a oportunidade. Nesse ponto, Seita já havia perdido tudo de si.

É especialmente pesado se olharmos como isso aconteceu com duas crianças. Quando ele noticia que a mãe morreu, pouca reação causa na tia. Quando a irmã está a beira da morte no consultório, não existe uma mão amiga, mas que escolha um garoto de quatorze anos realmente teria naquela situação?

Os vagalumes morrem cedo demais

Talvez as partes mais pesadas de Cemitério, sejam quando ele trabalha o significado dos vagalumes. A primeira vez que a narrativa traz isso à tona, é com a comparação a um avião kamikaze. Ambos brilhantes no céu noturno. Ambos mortos ao amanhecer.

A segunda vez, é quando a Setsuko enterra os vagalumes que ficaram brilhando no mosquiteiro. Porque eles precisam de uma lápide. Uma lápide como a da mãe.

Se já não fosse amargo o suficiente ver a Setsuko, o antro da pureza, falar de maneira tão seca da morte da mãe. Ainda a ironia de que a mãe sequer possui uma lápide. Sequer fora enterrada. Permanece numa caixa de madeira, vivendo com eles.

Os vagalumes foram tratados com mais dignidade por aqueles órfãos moradores de rua, do que as pessoas mortas no incêndio. Empilhadas e queimadas aos montes.

A terceira, ao menos cronologicamente, é quando a caixa de balas se abre. A caixa de balas que guardava as cinzas da Setsuko. E liberta o próprio Seita do tormento, ambos estão mortos, mas livres de todo aquele sofrimento.

 A pureza, representada pela Seita, agora apenas observa a nova cidade, moderna e colossal. A pureza está morta, e vai desaparecer, sem uma lápide para lembrar quem ela foi, sem um Cemitério para os Vagalumes. Porque os Vagalumes, eles morrem cedo demais.

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