Given tem o coração no lugar certo

Given é um anime que foi lançado na temporada de verão de 2019, fazendo parte do bloco Noitamina. A obra é baseada no mangá homônimo de Kizu Natsuki (Links, Yukimura-sensei to Kei-kun). A adaptação ficou por conta da Lerche (Astra Lost in Space, Scum’s Wish), com direção de Hikaru Yamaguchi (Escha Chron) e series composition de Yuniko Ayana (Orenchi no Furo Jijou, BanG Dream! S2).

Rompendo as Cordas

Eu preciso pontuar algumas coisas relevantes, antes de realmente começar a crítica. Primeiro de tudo, é importante destacar que Given é um drama. Mais ainda, é importante, até necessário, deixar avisado um trigger warning para obras que envolvem suicídio.

Disclaimer dado, vamos a sinopse: Given é a história de Mafuyu, um jovem colegial que encontrou o ex-namorado suicidado no apartamento e acabou por se isolar do mundo. Então, com a ajuda do Ritsuka, nosso protagonista passa por uma jornada de redescobrimento através da música.

É uma sinopse levemente spoiler, mas era necessário. Era necessário para podemos começar essa crítica com a aparente polêmica que ronda Given, ser um romance gay. Popularmente conhecido como boys love.

E isso deixou as pessoas em polvorosa. Principalmente certas alas da otakusfera que tentam como podem desviar com “mas são coisas separadas”, “eu vejo pela música”, dentre outras. 

A questão é: é impossível de se desvencilhar a música e o romance. A conexão do Mafuyu encontrando um novo amor no personagem do Ritsuka, conseguindo se perdoar “por sobreviver”, percebendo que ainda é possível ser feliz mesmo depois de perder o tal grande amor É Given. A música é só o meio pelo qual a história é contada.

Não é para isso ser lido como se a parte musical fosse dispensável. Mas se fossemos escavar o realmente até o osso, sobreviveria o romance, e não os acordes.

Isso posto, Given trabalha maravilhosamente bem com a música. O clima de banda indie, meio de brincadeira, meio sério. A dificuldade de se compor. O trabalho que é aprender a tocar um instrumento.

Tropeços técnicos

Se a obra não alcança o nível de detalhismo de Hibike Euphonium, é por causa da sua produção, que nem de perto é tão polida. Os personagens são meio duros, os character designs meio simples e lugar comum demais. As apresentações (no caso a única) ressoa com o espectador muito mais pelo roteiro que por causa da direção, que é operante.

Ainda falando da direção, a mesma abusa um tanto quanto demais de planos aéreos, com a câmera observando os personagens do alto, ao ponto de ficar cansativo. Foi consideravelmente difícil encontrar imagens ou composições para representar o anime durante a crítica. A maior parte das composições é pouco inspirada e um tanto quanto padrão.

Como se trata do segundo trabalho da diretora (e primeiro relevante) é até bastante perdoável. Principalmente por dois aspectos: a divisão de episódios e a parte sonora.

Given entende que possui uma boa trilha. Era primal que o tivesse, por ser uma história focada em música. Tanto encerramento quanto abertura, embora o visual não ajude, estão entre as melhores de 2019. E a apresentação que o Mafuyu canta é uma experiência para se ter, toda a catarse do personagem finalmente explodindo e lidando com a perda é absolutamente lindo. 

Sensação essa que só é corroborada pelo ótimo trabalho do dublador, que canta muito bem, e pela letra. Eu poderia fazer um longo nitpicking sobre como alguém que nunca compôs jamais conseguiria fazer uma letra daquela de improviso.

Mas seria uma reclamação boba, o roteiro gasta o tempo construindo a tensão do Mafuyu pensando sobre a letra. E o momento funciona per se, que é o mais importante no final das contas.

Já na questão da divisão de episódios, primeiro que acho muito corajoso o clímax ser no nono episódio. Foi um tiro que poderia ter dado muito errado, alienando o público da vontade de seguir os outros.

Segundo que o roteiro é muito inteligente em estar sempre girando o centro dos micro-conflitos, partilhando por todos os quatro membros da banda, mesmo que o foco central seja o grande arco do Mafuyu.

The Seasons

Por falar em banda, uma questão sempre muito delicada em dramas é dosar sua quantidade. Se usado demais, dessensibiliza quem está assistindo, e se torna não muito mais que torture porn. Se de menos, acaba deixando o roteiro aguado, com um certo sentimento de inconsequência.

E Given consegue trabalhar muito bem no fio dessa balança, por dividir a tragédia e a comédia por entre os núcleos. Enquanto a banda representa o futuro, um porto seguro, um otimismo, os amigos da antiga escola representam o passado, um senso de responsabilidade, a tristeza. 

Isso apenas falando do Mafuyu, mas o balanço está presente, ao menos em outros dois membros. Para o Ritsuka, se redescobrir perpassa por perceber o amor novamente na música. Tocar havia se tornado apenas mecânico para ele. Se tornado monótono.

Todo o arco do personagem sobre se descobrir apaixonado pelo Mafuyu, também é sobre ele se descobrir amando a música. Inclusive a série trata de maneira bastante madura a questão dele se descobrir gay, com a ajuda do personagem mentor, Akihiko.

Se descontar o Mafuyu, Akihiko é o personagem que eu mais fiquei interessado. O sábio, o vivido, Akihiko é uma espécie de espelho cínico do casal principal. Uma paixão ardente vivida na adolescente, que agora mais se parece uma prisão, esse é o estado atual do personagem. 

Isso é evidenciado tanto pela constante necessidade de se alcoolizar e arrumar desculpas para não chegar em casa. Quanto por toda cena filmada dentro daquele ambiente parecer claustrofóbica, com paredes cinzas e frias de concreto. Não é um ambiente em que ele quer ficar, ao mesmo tempo em que parte dele ainda quer.

Um personagem que fica meio de escanteio, sendo bastante relegado pelo roteiro é o Haruki. Basicamente ele é apaixonado pelo Akihiko e não consegue se declarar. Considerando o trabalho feito com os outros três, ele parece um tanto subdesenvolvido. Mesmo que a obra não esteja finalizada, falta algo ali, afinal mesmo o arco do Akihiko não é de fato concluído.

Olhando novamente para o futuro

Given, como dito no começo, é um drama que trata sobre o suicídio e trata de maneira muito madura. Não faz como glorificação, tão pouco simplesmente trata o personagem que se suicidou como um vilão. 

Trata como algo que infelizmente apenas acontece. Às vezes por um motivo fútil, uma briga atoa. Uma frase atravessada. Uma decisão atordoada. Enfim, Given trata o suicídio de forma realista.

A obra então evita olhar para o motivo per se, não importa o motivo, importa o resultado. Importa olhar e trabalhar aqueles que foram deixados para trás, com relações que nunca mais serão as mesmas.

Importa trabalhar quantas sequelas isso vai deixar, quantas cicatrizes vão ser deixadas. E é realmente muito bonito que tenha alguém para recolocar as cordas na guitarra do Mafuyu.

Se vale a reclamação, adoraria que o Ritsuka não verbalizasse o que representa trocar as cordas. Seria muito bom que o roteiro confiasse na inteligência do espectador para entender a mensagem, estava claro, seria inclusive mais forte termos uma cena em silêncio, apenas com o personagem arrumando a guitarra do futuro namorado.

Mas isso não passa de uma ranhura na pintura bonita. E não é como se fosse a única, Given é uma história com uma série delas, parte por produção, parte por roteiro. Parte pelo péssimo efeito de fumaça que nunca deveria ter sido aprovada.

Given é meio desengonçado, meio avoado, não é o mais brilhante, nem o mais bonito. Mas, quando sobe no palco e de fato canta, faz tudo valer a pena.

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