Kanata no Astra é a pior versão de uma excelente história

Kanata no Astra (ou Astra Lost in Space) é um anime que foi recém finalizado, fazendo parte da Temporada de Verão de 2019. O anime de 12 episódios adapta o mangá homônimo, escrito e desenhado por Kenta Shinohara (Sket Dance). A adaptação ficou a cargo da Lerche (Assassination Classroom, Classroom of the Elite), direção de Masaomi Ando (Kuzu no Honkai, Hakumei to Mikochi) e series composition de Norimitsu Kaiho (Magical Spec-Ops Asuka, Gunslinger Stratos).

Uma questão de tom

Bom, acho importante ressaltar que eu já li o mangá de Kanata no Astra. Acho isso relevante por não ser possível uma experiência “limpa” e isolada do anime por minha parte. Isso posto eu vou começar com as coisas que eu não gosto do anime.

Kanata no Astra é uma aventurona sci-fi leve, pelo menos em seu cerne, mas o anime parece não concordar com essa visão. Um grande problema dessa adaptação por parte da Lerche é querer fazer uma epopéia sci-fi em cima de Kanata. Simplesmente não funciona, a história não foi pensada dessa maneira.

Digo, não é por ser uma comédia que é boba, por isso a ideia de ser uma aventura. São esse grupo de adolescentes brincando através dos planetas, enfrentando desafios não tão perigosos assim enquanto descobre uns aos outros e a si mesmos.

Mas o anime decide aplicar uma capa dessaturada de pôr do sol, e isso atrapalha muito. Parece que a história pensa que não vão levar a sério se toda cena dramática não for às seis horas, com o fundo todo dourado e música edificante. Mas se quisesse fazer esse tipo de história, que fizesse.

O grande problema é que a produção parece apenas pegar o material fonte e ler com uma voz empostada, tirando parte da personalidade do char design, e quebrando com um grande pedaço do timming cômico.

Eu não sei se o Norimitsu sequer trabalhou, parece que ele só emendou os capítulos um no outro até dar a minutagem de um episódio. Isso fica bem evidente em alguns episódios, que dá pra notar a troca de capítulos, principalmente por cliffhangers do original acabarem ficando no meio do episódio. Dou destaque principalmente pro primeiro episódio.

Uma última reclamação por parte da produção é com o aspect ratio. As proporções da imagem simplesmente não se decide, ora é 16:9, ora tem barra preta nas bordas superior e inferior, que variam de tamanho entre as cenas. Não tenho problema com a variação em si, mas não parecem servir ao roteiro, parecem estar lá pra “ser cinemático”, e só me irritou muito.

Episódio da praia

Esses problemas de tom, fazem com que o episódio da praia (assim como outros quesitos e vitórias “fáceis demais”) destoem demais do tom geral da história. É aceitável que uma aventura coming of age pegue um longo episódio dos personagens falando sobre quem lhes interessam na equipe, com piadas e uma exploração de suas sexualidades.

Porém, quando a história quer se vender como séria, fica bastante desconexo. Felizmente o episódio da praia também marca uma quebra com essa capa snyderiana de pintura vazia. 

Com o roteiro se seguindo menos sisudo, a série se permite trabalhar os personagens de maneira muito mais elegante. E é com o Luca que Kanata no Astra mostra sua verdadeira força. Não é uma história sobre como eles sobreviveram na viagem, mas como renasceram através dela.

E a descoberta da sexualidade faz parte de crescer, e é neste contexto que Kanata no Astra aplica seu ecchi. A narrativa utiliza dele de maneira bastante ponderada (com exceção de uma cena absolutamente desnecessária entre a Quitterie e o Zack no banheiro), e por mais que pudesse ficar sem, ainda é justificada.

Como construir mistérios

Uma das melhores coisas de Kanata no Astra é, sem dúvida alguma, seu roteiro. Desde detalhes pequenos, como a conversa descompromissada sobre partenogênese, até coisas maiores como o porquê da Astra estar onde estava. Quase tudo é absolutamente encaixadinho.

Digo quase tudo por dois motivos: primeiro pela segunda nave no planeta que não gira, que é uma absoluta coincidência pra resolver o plot; e depois pela conversa dos vilões, que fazem uma reunião e explicam o plano, mesmo já sabendo o plano, e tendo executado o plano em sincronia. Mas no final são apenas ranhuras na pintura bonita.

Entrando no título do tópico, Kanata no Astra é um ótimo exemplo de como construir mistérios. Eles não são a muleta da narrativa, mas um meio pelo qual o roteiro em si se desenvolve. A narrativa está constantemente plantando e colhendo novos mistérios, respondendo perguntas, criando outras, enquanto trabalha o elenco e suas relações.

Isso se desenrola ao ponto que descobrimos o motivo da tentativa de assassinato pouco depois da metade da série. E não é uma meia resposta, é “A” resposta. A questão é que a resposta levanta outras perguntas, fortifica as relações, desenvolve os personagens.

Outra parte que muito me agrada é não usar a já clássica conversa em código. Sempre que dois personagens conversam, temos todo o contexto da conversa. Digo, não necessariamente todo, mas um dos personagens nos representa, e o cargo de “orelha” é passado conforme a necessidade de forma magistral.

Aries é Drácula ao contrário

Pra falar mais sobre a temática e os personagens, precisarei entrar em spoilers. Então esteja avisado.

Kanata no Astra é uma história muito interessante para o mundo que vivemos. Um mundo de pós-verdade, em que determinados grupos criam narrativas que melhor lhes convém. No caso do mundo do anime, é um ideal nobre, proteger a humanidade de retornar a uma era de caos, uma vez que atingimos uma suposta utopia.

Mas as coisas não são bem assim. Primeiro porque varrer um problema pra baixo do tapete e não comentar ele não fará com que suma. Segundo que humanos sempre serão humanos, e conflito faz parte de quem somos. De nada adianta esconder o passado, ter vergonha dele, e não refletir sobre o que levou nossos antepassados a fazer o que fizeram.

É uma questão bastante relevante inclusive pensando no contexto do Japão, que tem uma tendência a tentar apagar os horrorores que o país promoveu na época imperialista. E isso se conecta ao outro grande tema de Kanata no Astra.

Kanata no Astra discute bastante sobre identidade. Sobre como nos tornamos o que somos, e principalmente como nossa família é responsável por quem somos. Eles literalmente são clones de seus pais.

Toda a ideia é que o elenco principal reflete as inseguranças e frustrações de seus pais. O Kanata é forçado a ser decatleta por causa de seu pai ter que se aposentar cedo. A Yunhua é oprimida dentro de casa pela insegurança da mãe em estar envelhecendo. O Luca é feito com ambos os sexos por causa do seu pai não ser realmente bem resolvido com a própria sexualidade.

É uma visão bastante pessimista sobre a formação de famílias até. Pensar que os pais não querem o melhor para seus filhos, querem que eles compensem pelas suas próprias falhas. Mesmo pessimista, também é bastante real.

E é por isso que a Aries é tão importante. Ela não tem uma quebra, um arco tão grande quanto o resto, e não tem porque ela não precisa. A mãe dela não tratou a filha como uma extensão de si própria, mas como um indivíduo em si. Isso permitiu que a Aries já chegasse na viagem “pronta”, e, por isso mesmo, ela é o meio pelo qual os outros personagens encontram esperança. Além de trazer maior diversidade para as relações entre crianças e adultos.

Outro destaque é a cena catártica com o Charce. Ela funciona única e exclusivamente por causa da base sólida na irmandade daquele grupo. Era muito fácil que a cena ficasse apenas brega e tirasse completamente o expectador de tudo aquilo, mas o trabalho de conexão entre eles pavimenta tão bem a relação entre eles que você tem absoluta certeza que todos ali de fato morreriam um pelos outros.

Família é quem você escolhe

Kanata no Astra foi uma das melhores leituras que fiz ano passado. Mesmo com uns tropeços a mais por parte do anime e uma adaptação pouco inspirada, seu roteiro e personagens muito mais que sustentam a série.

Se vale uma recomendação no final dessa review é para irem atrás do original caso só tenham visto o anime, ou mesmo se ainda não tiverem o feito. É uma história redondinha, concisa, e quase uma visão de como Shingeki no Kyojin poderia ter sido se fosse bem escrito.

E, sério você aí do estúdio Lerche, para de fazer o mesmo enquadramento no por do sol. A gente sabe que é bonito, não precisa repetir ele a cada dois episódios.

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