Laputa: Castelo no Céu

Eu tenho algumas dívidas de “clássicos obrigatórios” no meu currículo enquanto pseudo-crítico de anime. Muito desses buracos são filmes do estúdio Ghibli. Então, com essa tentativa de produção semanal de críticas, parecia uma boa ideia ir consumindo aos poucos, em ordem cronológica, os filmes do estúdio. Nada mais justo do que começar pelo primeiro filme do Ghibli, Laputa: Castelo no Céu. Sim, o primeiro, Nauzicaa do Vale do Vento foi produzido pela mesma galerinha, mas ainda é pré Ghibli. 

Laputa foi escrito e dirigido por Hayao Miyazaki (Viagem de Chihiro, Princesa Mononoke), lançado em 1986. O filme conta a história de Sheeta, uma garota que tem a chave para a cidade perdida de Laputa. Ela então se junta a Pazu, um garoto de mesma idade em uma aventura buscando o Castelo no Céu.

No caso de Laputa, acho interessante ir observando o filme em seus pequenos blocos, subdivididos pelas localidades.

Abrindo um filme como poucos

Então, nada mais justo do que começar pela cena inicial. Gosto muito de como o Miyazaki estruturou esse pequeno bloquinho. Ele abre com um dirigível sendo atacado por piratas do céu. E nos mostra a Sheeta na companhia de uma série de seguranças. 

Com isso, fazemos a conexão rápida de que ela é alguma espécie de princesa, que está sendo escoltada por seguranças. Mas então, na mesma sequência, ele subverte isso, com a Sheeta desacordando um dos seguranças e tentando escapar sozinha.
É simples, mas elegante. Com uma cena, de não mais que dez minutos, já nos foi informado o quão relevante é a garota. A pedra que ela carrega. Que o governo daquele lugar não é exatamente amigável. Tudo isso sem ter que recorrer a diálogos baratos e expositivos.

Então, com a mesma finesse, a garota despenca do dirigível, e entramos numa montagem. A montagem em sépia com um traço de gravura de livro infantil europeu nos informa imediatamente, se trata de um flashback, real ou não. Digo real ou não por ser a fábula de criação da exata vila carvoeira que a Sheeta está caindo, onde as pessoas não acreditam mais na cidade dos sonhos. 

Laputa, para aquela cidade, não passa de uma história infantil, por consequência, apenas as crianças acreditam nele, e é então que o Pazu entra na história.

Um conflito de classes

Pazu é um órfão, pobre e sem esperança de um futuro melhor. Pra dizer a verdade, a vila operária toda o é. Não é por acaso que a ambientação steampunk foi escolhida pelo filme. O Miyazaki entende que steampunk é mais do que fumaça e maquinário. É o reflexo de uma época péssima, com condições desumanas.

É interessante observar como o patrão, líder daquela mina de carvão, nunca é sequer representado, não existe pessoalidade. Todos ali estão presos, fazendo seu trabalho, a espera de por sorte encontrar uma jazida de materiais preciosos. Nem por isso o filme se transforma num dramalhão. Pazu, quase que adotado pela vila como um todo, ainda é um garoto otimista, acredita no sonho de seu pai, e segue a vida de maneira a refletir isso.

Uma cena que gosto muito, é a do mesmo preparando o café da manhã, e partindo um ovo ao meio. Isso comunica tanto com tão pouco. Uma história não precisa ser verborrágica, ter um bilhão de episódios, para construir um personagem complexo, só precisa pincelar humanidade nele.

E o filme faz isso com toda a vila, pouco tempo do filme é gasto lá, mas o sentimento de irmandade é muito forte. É um ambiente bastante caloroso, ao mesmo tempo em que é completamente entendível o motivo do Pazu ir embora. Por mais que as pessoas gostem, até o amem, por lá, aquele não é o lugar dele. Ele morar distante do centro evidencia isso.

Mas um conflito de classes não é um conflito sem…a outra classe, e pra isso eu preciso falar um pouco de como Laputa utiliza da violência.

A escalada da violência

Existem três níveis de violência em Laputa. A violência interpessoal, a violência de organizações, e a violência tecnológica. É muito interessante como o Miyazaki filma e retrata essas violências de forma absolutamente diferente.

A primeira, é representada pelos piratas do céu. É uma violência cômica, inocente e boba. Me lembrou muito da retratada pela gangue do Lupin (que o Miyazaki também dirigiu). Digo, não deixa de ser violência, mas é mostrada de uma forma doce, com armas absurdas e cômicas, um duelo de força pela “honra do homem”, é uma demonstração que permite ao expectador se afeiçoar aos párias.

A segunda, é representada pelo exército. E é clara como o dia a variação entre um e o outro dentro da mesma cena de perseguição. A partir do momento em que o exército entra, com um todo seu aparato, é como se um sorriso morresse na obra, o risco escala muito, e os nossos anteriormente párias piratas recebem parte da nossa simpatia. É uma jogada de mestre, como um mágico balançando um pano para esconder o verdadeiro truque. E com um passar de segundos, estamos agora torcendo pelos piratas.

A terceira, é representada pelo governo. Não um governo, o governo enquanto entidade mais opressora. No caso, o governo na mão de um déspota. A primeira demonstração disso, durante a ativação do robô (que mais parece um golem), é filmada como um filme de terror. É impossível deixar mais clara a visão antibelicista do filme do que isso. Mas eu me adiantei um pouco, pois nessa hora, já estamos com o Pazu e os piratas no mesmo time.

Lembra que eu falei que tinha sido uma jogada de mestre? Pois então, ao arrastar o antagonismo para o exército, o roteiro permitiu que não questionássemos a aliança feita, mostrando um novo lado dos piratas, o clássico arquétipo do ladrão com coração de ouro.

Donzela em perigo

Para podermos seguir em direção a Laputa, precisamos de mais uma peça. Vamos falar um pouco de arquétipos. Arquétipos não são um problema, preciso que isso fique claro já de começo. Arquétipos são atalhos narrativos importantes, permitem com que o roteirista não precise passar tanto tempo introduzindo o psicológico de personagem X ou Y, umas poucas pinceladas e conseguimos enxergar o padrão, o ser humano é bom de padrões. Mas o problema é achar que isso é suficiente.

Não que isso seja o caso em Laputa, muito pelo contrário, mas acho importante deixar isso registrado. Enfim, a Sheeta começa a história como uma donzela em perigo. É capturada e salva pelo Pazu e os piratas, vê os horrores do potencial destrutivo que ela tinha em mãos.

Esse é o ponto de partida do personagem dela, esse é o relevante aqui. A partir desse instante, ela decide tomar para si a missão de impedí-los de acessarem Laputa. Se não desse pra deixar mais claro, ela abandona um vestido todo branco por roupas mais coloridas, passadas a ela pela Dola.

Dola, caso alguém não tenha visto, é a mãe e líder dos piratas do céu. E é a partir daí que entramos na pequena sociedade do navião (???) pirata. Gosto muito como o Miyazaki utiliza esse momento de calmaria para várias coisas. Ele trabalha a personagem da Dola. Ele ressignifica os piratas, que passam de párias à símbolos de liberdade. Ele trabalha mais a ideia dos jovens herdando os sonhos dos mais velhos, coisa que já tinha começado lá na vila com o Pazu.

E, por último e mais importante, ele coloca a Sheeta e o Pazu para discutirem sobre o que querem fazer. Essa conversa serve a muitos propósitos, desde o relacionamento deles, estabelecer um lugar para voltar, e principalmente, falar sobre tecnologia. A questão, por mais que batida, de que tecnologia não tem índole, quem tem é quem usa, é muito bem encaixada aqui. A culpa não é da cidade, é do megalomaníaco que quer usá-la pro caos.

Laputa a vista

Içado voo, motivações reavivadas, seguimos então na busca pela cidade flutuante. Não sei se já deixei claro como Laputa é visualmente soberbo, e não digo só por ter movimentação fluida, digo na fotografia. Fotografia essa dirigida pelo Isao Takahata, inclusive. 

A variação nas composições e nos tons, para retratar a mudança nos gêneros que a direção da obra foi se apropriando é feita de maneira soberba. E tudo alcança o seu ápice durante a perseguição das naves. Me lembrou muito o clássico Mobby Dick, principalmente nas escolhas para retratar a gigantesca nave do exército, Golias. Ela se movimentando por entre as nuvens, como um monstro marinho ameaçador e imparável frente a pequena embarcação dos piratas. É muito impressionante como Laputa sabe causar a sensação de escala.

A coisa fica ainda mais linda quando o aviãozinho com a Sheeta e o Pazu é engolido pela tempestade. Com os raios serpenteando como dragões, formando um caminho em direção ao paraíso. Logo depois tem o meu plano favorito do filme. Eles finalmente caem na ilha, sem trilha, apenas o barulho da tempestade. Então a trilha vai vindo bem do fundo, crescendo, ao mesmo tempo em que o nevoeiro vai se dissipando e quando a música atinge seu ápice, temos a majestosa cidade mítica.

Não é um plano difícil, com um bilhão de partículas e personagens se mexendo, balanço de câmera e quebra de perspectiva. É quase que exclusivamente uma passada lateral da câmera sobre uma imagem estática. Mas também é o final de uma jornada, e o começo de outra.

O reino dos deuses

É muito clara a visão de utopia e paraíso que Laputa representa. A terra prometida, que as crianças sonham, em oposto ao que tem nas minas de carvão. É muito simbólico então que Laputa não tenha nada além de máquinas e natureza. Uma terra dona de uma tecnologia avançada, um reinado de deuses.

Mas é nessa altura que os problemas do filme começam. Na verdade o problema, o antagonista principal, Mucha. Digo, ele já havia sido apresentado, mas é neste terceiro ato que sua motivação e passado ficam claros. E é fraco. O roteiro ganhava muito mais enquanto não havia personalizado seu antagonista. O Musha não é muito distante de um cientista louco de filme B, e para um filme com tanto cuidado, é um escorregão e tanto.

Não estraga o filme, muito longe disso, principalmente pelo retrato que ele trás para o próprio exército, enquanto porcos simplistas atrás de tesouro. É de fato uma discussão bastante boa sobre o quanto poder vale mais que um punhado de ouro. Mesmo assim o personagem em si acrescenta pouco, não causa muita tensão, e não é interessante em si mesmo.

Ao menos o arco da Sheeta e do Pazu, ambos deixando a infância para trás, simbolizado tanto pela destruição da cidade dos sonhos, quanto pelo corte de cabelo, é redondinho e ótimo.

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