FLCL: Grunge é a marca de uma franquia sem futuro

Garoto olhando para o céu sentado em sua moto ao por do sol.

Vivemos num mundo inundado pelos serviços de streaming. Nessa nova lógica, não temos mais séries, filmes, apenas conteúdo. E no mundo dos animes isso não é nenhum pouco diferente. Tanto Crunchyroll, quanto Netflix e, neste caso, Adult Swim tem tentado comer sua fatia do bolo das animações nipônicas.

Ao mesmo tempo, para os maiores serviços, a qualidade individual de um projeto importa muito pouco. O que importa é ter as marcas™ reconhecidas pelo público. E é neste contexto que chegamos em nossa quarta temporada de FLCL, FLCL: Grunge. Para quem é leitor de longa data do site, lembra que eu não sou o maior fã do FLCL: Progressive. E no entanto, cá estou eu de volta para ver se dessa vez eles acertaram a mão, talvez a estratégia esteja correta afinal…

De qualquer FLCL: Grunge se passa em um mundo estagnado. Após ciclos de destruição e reconstrução, as antigas gerações desistiram de acreditar em um futuro. Esse pessimismo e resignação fez com que mesmo as gerações mais novas desistissem de tentar. Quero dizer, todos com exceção de 3 adolescentes: o filho de sushiman Shinpachi, o alienígena imigrante Shonari e a filha de ferreiro Orinoko.

A premissa da série tinha um potencial interessante, e esse potencial poderia ser amplificado pelo fato de essa série ter ousado em seu estilo de animação. FLCL: Grunge é um anime em CGI, mas séries boas não são feitas só de ideias e potenciais, então vamos falar sobre o CGI

Computação gráfica é o futuro da animação?

Talvez eu difira da maior parte dos fãs de animes, mas eu não abomino o CGI em animação. Tão pouco acho que o Studio Orange (Beastars, Trigun: Stampede) seja uma anomalia. O Mappa é um estúdio que tem um departamento de CGI bastante competente. E mesmo que longe do seu competidor direto, acho que o Polygon Pictures (Knights of Sidonya, Blame) faz um trabalho bom com a ferramenta.

Mas é isso, 3D é uma ferramenta, com suas próprias regras, forças e limitações. E se você vai fazer um projeto com a ferramenta, é importante que isso esteja bem entendido. As coisas pioram se esse projeto é FLCL.

FLCL, a série original, é um OVA que está ativamente empurrando a mídia, experimentando, quebrando e reconstruindo para testar os limites do que poderia ser feito em 2D. Já o Grunge pouco tenta ousar com o CGI. Claro, a série vai fazer as brincadeiras de usar estilos diferentes, mas todos eles estão em 2D e, todos eles, já foram feitos na série original, com um apuro técnico ridiculamente mais alto.

Essa série nova parece então, no quesito experimentação e brincadeira com a mídia, meramente um pastiche, um fanservice porque é isso que o fã de FLCL espera da série, ao invés de algo que está no coração do projeto.

Passado isso a qualidade dos modelos em si é bem medíocre. É visível que são modelos ultra simplificados e, pelo menos para o meu gosto, bastante feios. O problema fica mesmo nas cenas de ação, onde a direção tenta o máximo que pode esconder a falta de capacidade de entregar movimentação fluída com corte de câmera. Aprecio o esforço, mas fica com cara de uma produção barata e capenga.

Moça ruiva em cg em primeiro plano enquanto mulheres em 2D estão deitadas em um divã do anime FLCL: Grunge
Eu entendo que não vale a pena criar um modelo diferente para personagens tão irrelevantes, mas PELO AMOR DE DEUS O QUE É ISSO AQUI???

A cidade estagnada

Se os modelos dos personagens me incomodam, os cenários são indesculpáveis. É muito esquisito como estamos em uma ilha que não parece uma ilha, cada cenário parece completamente desconectado de todos os outros.

A Orinoko vive em um campo de bambus vindo de filmes de samurai que fica ao lado de um lixão infinito vindo do Wall-E e umas ruas pra baixo temos o restaurante de sushi padrão do pai do Shinpachi.

É muito difícil de se localizar nessa série. E pior ainda, essa cidade tem um problema de moscas, isso é dito no roteiro, mas fica completamente de fora do visual das coisas. Parece que as moscas brotam do chão quando o texto precisa delas, o que faz bem pouco sentido quando personagens reiteradas vezes chamam a cidade de lixão.

Esse aspecto de ambientação que não se liga fica mais estranho quando examinamos a estrutura da série. FLCL: Grunge conta com 3 episódios, cada um na perspectiva de 1 dos protagonistas. Os episódios vão então contar os acontecimentos de um mesmo dia para acentuar aspectos diferentes daquela sociedade. Acontece que esses aspectos diferentes não se conversam e o quadro resultante das perspectivas é um quadro torto.

Garoto pesca ao por do sol com gigantesco ferro de passar roupa em cima da montanha.
Um dos melhores planos da série toda.

As diferentes visões de FLCL: Grunge

Eu gosto da ideia de fazer uma narrativa não linear que ao final você tem o cenário como um todo. Acontece que nessa série, parece que 3 roteiristas diferentes pensaram cada um no seu episódio e nunca discutiram o foco da temporada. Isso é particularmente bizarro, já que os 3 episódios tem o mesmo roteirista creditado, Tetsuhiro Ikeda.

Se focarmos no primeiro episódio, aos olhos de Shinpachi, esse planeta está em estado de completa letargia. Já no segundo episódio, o que nos é passado é um estado de conflito constante, enquanto no terceiro temos um conflito regado a luto e escassez de recursos. Essas 3 perspectivas poderiam se complementar, mas o roteiro parece esquecer de fazer as conexões necessárias.

E não só no quesito temático isso acontece. Minha perspectiva para FLCL: Grunge estava bem mais positiva ao terminar o terceiro episódio. O que me parecia até ali é que tínhamos sido introduzidos aos dilemas de 2 dos 3 protagonistas, para no terceiro episódio termos a apresentação do último personagem e a temporada fechar com a formação de grupo.

Pelo ritmo, me pareceu lógico que ao final do terceiro episódio, teríamos um cliffhanger para que, só em FLCL: Shoegaze, que foi anunciada ao mesmo tempo, nós teríamos o desenvolvimento e a conclusão. Mas não, a série apresenta o drama da Orinoko até a marca de 15 minutos do terceiro episódio e aos 22 minutos fecha o roteiro como um todo. O que parecia uma introdução, era tudo que o roteirista tinha para entregar destes personagens.

Homem de pedra segurando espada em contraluz com placa de neon.
O personagem com melhor aproveitamento da temporada, apesar do final dele ser um tanto quanto bizarro tematicamente.

Uma franquia sem futuro

É quase metalinguístico que essa história seja sobre uma cidade sem futuro enquanto a franquia FLCL parece completamente sem ideia para onde ir. Entrando um pouco mais nos personagens, essa quarta temporada de FLCL nos brinda com um elenco ainda pior do que o de Progressive.

Como protagonista nós temos o Shinpachi, ele é exatamente o que você esperaria de um protagonista de FLCL condensado em 25 minutos. Tudo que nós levamos 6 episódios cuidadosos para o Naota evoluir na série original e feito em um speedrun no episódio inicial. Nem preciso dizer o quão atropelado as coisas são.

O melhor do trio é o Shonari. Shonari é um alienígena rochoso que tem um irmão mais velho que, após perder os pais muito jovem, entra para a yakuza. O tempo vai passando e esse irmão vai se tornando um alcóolatra. O irmão do Shonari coloca seus últimos esforços para fazer com que o irmão tenha um futuro apesar da xenofobia que sua espécie sofre.

Fechando o trio, temos Orinoko. Ela é tão básica que chega a ser triste, basicamente seu pai era um ferreiro renomado, sua mãe morreu e ele não tem mais ferro para fazer sua arte. Vimos esse tipo de personagem um milhão de vezes, o que não é um problema em si, mas quando se alia isso a construção mais básica e genérica possível, aí não tem muito que salve a nossa franjudinha gótica.

De personagens antigos que retornam, temos o Amarao, que só tá aqui porque os fãs gostam dele. Sério, o personagem não faz absolutamente nada na série toda e nem avança de maneira nenhuma.

Falando em avançar, meu deus, 2023 e a Haruko está parada no tempo. Se na série original ela era um personagem misterioso e magnético, que instigava o espectador a saber qual era a dela, hoje em dia parece um fantoche sendo balançado por cordas. A série flerta com a ideia de cada um dos garotos ver ela por um prisma diferente, mas tudo cai por terra quando ela ainda está correndo atrás do Atomsk da mesma maneira que mais de 20 anos atrás.

FLCL tentando beijar o garoto menor de idade.
Nos anos 90, talvez essa atitude imprevisível da Haruko surpreendesse, hoje, parece só algo robótico.

FLCL: Grunge

Acho que o maior sentimento que eu tive ao ver os créditos rolarem durante foi o de tristeza. Tristeza por ter visto uma série péssima, sim, mas muito mais pelo tipo de série que FLCL: Grunge é. É uma série feita para ser colocada e esquecida em um serviço de streaming, para você olhar o catálogo e pensar que um dia vai ver, sem nunca se dar ao trabalho de verdade.

E se você se der ao trabalho, a série foi construída para te dar recompensas de referências da série original, sem o risco ou a ousadia. É uma rebeldia controlada, moldada, fabricada em larga escala para ser segura e descartável.

FLCL: Grunge é, mais do que qualquer outra coisa, conteúdo sob demanda. Não são necessárias ideias, temas, personagens ou mérito artístico, basta ser watchtime para preencher um gráfico de engajamento em algum escritório no Vale do Silício.

Então, uma introdução basta, três episódios bastam, referências baratas bastam, uma franquia conhecida, não importa o quão desfigurada, basta. FLCL: Grunge é uma série patética.

Mulher geme ruiva geme em pose sensual enquanto honomatopeias surgem na tela.
Espero que um dia essa franquia recupera que seja uma fração do brilho e carisma que a Haruko merece.

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