Trigun: Quem é Vash Estouro da Boiada?

Trio de Trigun numa cafeteria destruída

Trigun é um mangá de 2 volumes lançado em 1995 na Shonen Captain. O mangá é o trabalho de estreia de Yasuhiro Nightow e conta a história de Vash Stampede. Vash é o Ciclone Humano, um desastre ambulante que causa o caos por onde passa. Por ser considerado culpado de varrer a cidade de Julho do mapa, Vash tem uma recompensa de 60 milhões pela sua cabeça. Isso faz com que qualquer tipo de maluco cruze seu caminho, Trigun conta a história dos encontros e desencontros desse pistoleiro atormentado pelo seu passado com os habitantes pitorescos deste planeta desértico.

O quadrinho foi lançado aqui no Brasil pela Panini Comics, bem como a sua continuação, Trigun Maximum, com 14 volumes. A franquia conta ainda com uma adaptação feita pela Madhouse com 26 episódios e um longa. Um novo projeto animado da franquia está em desenvolvimento pelo estúdio Orange, com o nome TRIGUN STAMPEDE.

Trigun, homem de sobretudo estiloso chamando gigante pra porrada
Se tem uma coisa que o Vash é, é cool.

Um mundo de possibilidades

Uma maneira interessante de começar a se falar sobre Trigun é justamente por um dos aspectos que o Nightow mais dá foco, sua ambientação. O planeta Gunsmoke é um planeta desértico que começou a ser habitado pela humanidade num passado não tão distante. Mas não era planejado que isso ocorresse, na verdade, um acidente em órbita fez com que uma frota de colonizadores precisassem pousar forçadamente no planeta. Por um milagre, muitas das naves fizeram ficaram intactas, mas os colonos não tinham o conhecimento para utilizá-las. Do garimpo das tecnologias presentes nas naves, a população começou a construir povoados. Sete desses povoados chegaram a se tornar cidades. Mas o clima inóspito e as adversidades fizeram com que a população esteja minguando lentamente.

Com esse pano de fundo, é de se esperar que Trigun seja uma história carregada, com um clima soturno de fim de civilização, mas isso não é verdade. O mangá na realidade tem um tom bastante leve e descompromissado, focado em explosões, perseguições e filosofia demode. Isso se dá por um esforço ativo de seu protagonista, Vash, uma figura contraditória que será abordada mais a frente nesta review. Por agora basta dizer que ele é um bobão que está sempre tentando levar as coisas para o lado cômico, escalando as situações em direção ao ridículo.

O universo da história em si é bastante rico. Mesmo com apenas dois volumes, Nightow passa por uma série de grupos e situações diferentes. O autor usa muito de clichês do gênero faroeste (briga de bar, assalto a um trem, cerco numa fazenda, etc) para construir um mundo que não soa como nenhum outro. Claro que isso não significa que ele não tenha inspirações. Ele as têm e sequer tenta escondê-las. De maior destaque coloco o quadrinista Todd McFarlane, famoso pelo seu trabalho no Homem-Aranha durante os anos 90 e também o criador do Spawn.

Mas é claro que conseguir colocar tanta coisa em míseros 2 volumes vem com um preço a ser pago. No caso de Trigun, esse preço está no ritmo dele.

hommem em contato com figura angelical bibliocamente correta
O angelico e o profano nas baterias humanas.

Viva rápido e morra jovem

É importante destacar que parte dos problemas de ritmo de Trigun não são diretamente culpa do mangá. A revista na qual a história foi publicada acabou sendo cancelada e esse é o principal motivo de seu final abrupto. Dito isso, muito da culpa pela bagunça também é da inexperiência do autor. Trigun é o tipo de história frenética na qual muito pouco tempo se perde explicando as coisas. Isso traz vantagens muito claras, o fluxo de leitura do mangá é uma maravilha por exemplo. É muito difícil parar de ler Trigun. Então mesmo ele sendo dois volumões de 300 páginas, eu li tudo de uma vez.

Também é positivo para instigar o leitor. Trigun vai brincar muito com a ideia de que essa humanidade já foi muito avançada, mas perdeu completamente o domínio dessa tecnologia. Tudo que eles conseguem fazer é operar as máquinas e torcer para que elas não quebrem a este ponto. Isso por si só gera uma curiosidade em saber o que aconteceu para chegarem a esse ponto. Também se alia a isso que parte das tecnologias são uma mistura de angélico e profano, as lâmpadas gigantes, elementos icônicos da série, tem dentro delas uns anjos bizarros cheios de apêndices e membros extras. Elas são conhecidas como Plants e, ao menos neste mangá, são tratados como grandes mistérios sem resposta.

Por outro lado, também é um ritmo cheio de problemas. Os volumes são separados entre si, no primeiro, temos mini-arcos com pessoas daquele mundo. Esse primeiro volume tem um tom bem mais leve e divertido. É nele que se concentra as partes mais cool do quadrinho, com participação de vários personagens diferentes. Mas quase todo arco acaba com um sabor de que foi apressado. Sempre tinha ali um ou mais personagens que poderiam ter sido melhor explorados. No arco do Sand Steamer, o líder dos bandidos, Brilliant Dynamites Neon, é mal igual o Pica-Pau e tem uma mudança repentina de coração quando é derrotado pelo Vash. Já no arco do cerco ao Geoplant, além do arco em si terminar num anticlímax esquisitíssimo, a Meryl Stryfe tem um drama completamente fora de lugar que surge do nada e se resolve.

Isso sem falar da virada repentina para um plot do Vash sendo caçado pelos 12 Gung-Ho, problema claramente causado pelo anúncio do cancelamento da revista.

Cena noturna carros no deserto invadindo um trem
Olha essa perspectiva, coisa fina demais.

Crônicas de Trigun

Antes de entrar no plot central, queria passar um pouco mais pelos arcos episódicos de Trigun. São com eles que somos lentamente introduzidos a essa história e por meio deles que nos interessamos pelo grupo principal: Vash, Meryl e Millie. Ao mesmo tempo, eles são uma grande mentira que está sendo nos contada, mas eu já chego nisso.

Falando um pouco sobre a Meryl e a Millie, ambas são empregadas da agência de seguros. Elas foram designadas a acompanhar o Vash por ele ter sido considerado um desastre natural. O trabalho delas é impedir que ele cause muitos danos materiais por onde passa. Tentativa essa que é sempre frustrada por uma escapadinha do Tornado Humano, ou por algum vilão que teima em cruzar seu caminho. Ambas são bastante carismáticas, mas sinto que a série peca em desenvolver melhor as duas personagens.

Existe a tentativa no arco do cerco de trabalhar um pouco mais da Meryl, mas é não obtêm êxito. O arco começa com a dupla enviando cartas para a família, Millie passa a noite acordada escrevendo uma bíblia enorme para cada primo e tio, enquanto Meryl envia apenas um postal. A cena é feita de maneira cômica, mas conforme o arco avança, vemos que existe algo mais sério por trás. Meryl na realidade se enxerga como independente, mas na realidade é uma workaholic que evita olhar para o resto da sua vida. Acontece que faltou o quadrinho dramatizar antes o quão viciada em trabalho a personagem realmente é. Então essa percepção da personagem e o crescimento posterior acaba soando abrupto e um tanto plástico.

Indo na contramão disso, temos o Kaite. Kaite é um garoto que aparece no arco do Sand Steamer. Ele nos é apresentado como um clandestino a bordo do Sand Steamer. Conforme o arco vai passando, descobrimos que ele está de conluio com o Dynamite e também que ele é filho do engenherio que projetou o Sand Steamer. O personagem é um secundário de arco, com pouco tempo de tela e mesmo assim a história faz com que tenhamos um senso de completude. Entendemos o processo que levou ele a entrar pro grupo do Dynamite, o dilema interno dele e por isso mesmo quando chega a uma resolução, ela tem o peso que precisava.

Trigun, mulher morena baixa com revólver e mulher loira alta com lança-granadas impedindo uma chacina
A dupla carismática, mas subutilizada, no arco que as dá mais destaque.

Os anos noventa e Trigun

Trigun é um quadrinho dos anos 90. Isso é mais do que óbvio, afinal ele foi publicado em 95. Mas ele compartilha de muito do fervor dos anos 90. No mercado dos mangás, Trigun ainda tem muito do estilo da escrita de shonens de luta, que passam um longo tempo tateando o ambiente entendendo a si mesmos. Isso é algo muito presente em mangás dessa época como Ruroni Kenshin e Yu Yu Hakusho.

Também é parte intrínseca de seus temas, a ecologia era uma questão muito forte e a virada do milênio, cheia de incertezas, estava na mente das pessoas. A quantidade de conceitos e temas que esse mangá tem em comum com Final Fantasy VII é um absurdo. São tantas que eu acreditei que ele houvesse se inspirado pelo que o JRPG da Square fez. Acontece que Trigun acabou 1 semana antes da estreia de Final Fantasy VII. Já seu anime, meio pelo qual a obra explodiu, é do ano seguinte, 1998. O espirito do tempo é assustador as vezes.

Outra forte presença dos anos 90 em Trigun está em seu traço. Em especial nos rostos dos personagens e na forma como tudo é bastante geométrico. Falando nesses dois aspectos, o Nightow é muito acima da média. Considerando que este é seu primeiro mangá, o alcance que o mangaká tem para desenhar expressões é impressionante. Em especial no Vash, que é um personagem bastante distante do leitor, e precisa que as expressões tenham mais de uma camada de interpretação. E o quadrinho consegue fazer isso com maestria. Mais um destaque visual fica por conta da gangue do Dynamite com seus uniformes esféricos. Várias das páginas mais bonitas deste quadrinho advém deles no deserto escuro.

Um ponto negativo na arte é em lutas um pouco mais elaboradas. Nos duelos do Vash contra o vilão da vez, as vezes é difícil entender o que está acontecendo. O próprio Nightow deve ter percebido isso, pois em vários momentos algum figurante comenta a luta dizendo o que está acontecendo. No primeiro arco isso acontece no tiro para desviar o soco do gigante. Já no segundo, acontece com toda a geografia da luta contra o Dynamite, que é ininteligível. E um problema que o autor não solucionou até hoje são suas fraquíssimas capas.

Agora para continuar essa review, vou precisar entrar em spoilers, então se você não leu, mas tem interesse, eu recomendo que pare por aqui. Leia o mangá e depois volte para a gente conversar sobre as grandes coisas que rola bom baixo do roteiro de Trigun, bem como seu protagonista.

Trigun de costas abrindo as portas e dando de cara com um bando de bandidos armados e com máscaras de gás.
Eu amo o design desses bandidos!

Vash Estouro da Boiada

Trigun começa com uma pergunta: Quem é Vash Stampede? É esse o questionamento que leva o quadrinho pelos seus dois volumes. Ouso dizer que mesmo após o final dos volumes, ainda não tenhamos um panorama completo de quem é o Vash.

Talvez isso seja muito pessoal, mas eu simplesmente amo histórias com protagonistas assim. Personagens com camadas e mais camadas de máscaras sociais, mas que aqui e ali escapam seus verdadeiros pensamentos pelas rachaduras. Uma outra obra recente com essa mesmo ideia é The Case Study of Vanitas. Aqui, Vash é um grande mentiroso, e o mangá é seu cúmplice.

Muito habilidosamente, o Nightow vai fazendo uma transição gradual entre o bobo e o soturno durante os capítulos. Seria ainda melhor se ele não tivesse tido claramente que apressar os planejamentos. O Vash é um personagem com um trauma e um peso muito carregado sobre os ombros, mas que finge estar tudo bem por meio de um sorriso falso. Trigun então, mostra essa sociedade em seu crepúsculo de forma muito leve e descompromissada. O texto conversa com seu protagonista em uma simbiose muito bem feita.

Para além do tom, o Vash é uma contradição ambulante. Ele é considerado culpado por ter destruído a cidade de Julho. Mas em todo tempo que estamos juntos ao personagem, ele é um idealista pacifista que vai ao limite para evitar tirar uma vida. Ao mesmo tempo, o próprio Vash diz que está em uma jornada para matar um homem. Ele finge para todos, mas quanto mais o conhecemos, menos ele consegue esconder a solidão que sente. Solidão essa que é um sentimento latente em Trigun, seja por meio do seu pano de fundo, seja pelas expressões do Vash, uma grande melancolia vai se instaurando na história até alcançar seu grande final.

E mesmo o final termina ambíguo. Knives, o homem que sabotou as naves e condenou a humanidade a cair em Gunsmoke renasce, e o Vash é dado como desaparecido. Não vemos o resultado do disparo do Vash, apenas uma nova cratera na lua, e a dúvida se mais uma vez ele voltou a vagar por escombros sozinho.

Homem loiro com trabuco e cara de maluco
O contraditório interior de Vash.

A aridez de Trigun

Para além do psicológico do Vash, tematicamente a história é muito forte. Knives acredita que a humanidade, que já destruiu a Terra e agora se lançou ao espaço, não merece o direito de uma segunda chance. É por isso que ele faz o que faz. O deserto então é uma punição para a raça humana por destruir o próprio habitat. A morte e a secura são o que sobrou para a nossa sociedade.

Já Vash, muito pelo que aprendeu com a Rem Saverem, a responsável pelos colonos, acredita que a vida não pode ser tirada. Que o sofrimento desnecessário é a coisa mais triste da humanidade. Vash está então em oposição ao próprio deserto. Ao mesmo tempo, por não ser humano assim como Knives, ambos tem uma visão alienígena sobre nós.

Por isso mesmo, Vash acaba sendo tão gentil. Por mais que ele minta e se afasta, não o faz por malícia ou ganho próprio. As jornadas do personagem são muito para proteger e apreciar aquilo que a Rem morreu para defender. Então, para Vash Stampede, matar quem quer que seja, é matar a memória da própria figura materna.

De forma um tanto quanto brega, a gentileza do Vash traz um pouco de esperança para aquela sociedade condenada. Seja por meio do Kaite, seja ajudando a primeira cidade na qual esteve. Ou até mesmo de forma mal feita com o Dynamite. Vash está sempre tentando fazer o melhor que está ao seu alcance, ainda que dentro dele não exista mais tanta esperança. É um personagem solitário e atormentado, cheio de camadas e dilemas e a cola que faz Trigun funcionar.

Homem sonhando com mulher que já morreu em um piquenique.

Conturbado e interessante

Trigun está longe de ser uma obra redonda. Ele é cheio de escorregões e tropeços, vindo tanto de um autor novato, quanto de uma publicação conturbada. Mesmo assim no final do dia ele consegue entregar uma história poderosa com um protagonista fantástico, ainda que falho em diversos aspectos. Boa parte desses problemas são afinados na produção em anime, que junta os dois mangás e, imagino, que também no Trigun Maximum, sequência que, assim que eu ler, deve aparecer por aqui também. Existe muito mais por baixo de Trigun do que um cowboy com três armas, basta que se deixe levar pela narrativa caótica do Nightow.

Trigun chorando sentado numa plataforma debaixo do sol quente.

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