Spy x Family e as Mentiras Genuínas

Capa da review de Spy Family, família forger dentro de um trem

Spy x Family teve sua primeira temporada lançada em 2022. A temporada foi dividida em dois blocos de 12 episódios, o primeiro deles tendo finalizado recentemente. O anime é uma produção da Cloverworks em parceria com a Wit Studio. A direção e o series composition ficaram ambos por conta do Furuhashi Kazuhiro, diretor da inconstante re-adaptação de Dororo (2019) e do excelente Mobile Suit Gundam Unicorn (2016). Furuhashi não teve um trabalho de destaque enquanto series composition. Spy x Family é uma adaptação do aclamadíssimo mangá do Tatsuya Endo, que segue em publicação. É possível assistir o anime aqui no Brasil pela Crunchyroll com o seu segundo bloco já confirmado para este ano.

A série conta a história de Twilight o maior espião de Westalis. Para evitar uma escalada de guerra, ele é enviado para a Ostania com um único objetivo, investigar o Conselheiro do partido nacional, Donovan Desmond, para costurar um acordo de paz entre os países. Acontece que Donovan é um homem muito reservado e suas poucas aparições públicas são sempre em eventos estudantis da Academia Eden. Portanto Twilight precisa criar uma família falsa, ingressar o filho na academia para que assim exista uma ponte de contato. Este é o nascimento das desventuras da Família Forger, formada pelo espião, Loyd Forger, a assassina, Yor Forger, e a telepata, Anya Forger.

pai cansado carregando filha dormindo e compras.
Ter filho pode ser duro as vezes.

Uma questão de adaptação

Quero começar essa review de um jeito diferente. Spy x Family é uma adaptação de um mangá que eu gosto muito. Comecei a leitura dele ainda nos primeiros 5 capítulos e acompanho desde então. Por isso mesmo não seria justo eu fingir que desconheço o material original para essa review. E justamente por conhecer que as rachaduras na parede bonita ficam mais aparentes. Não que seja nada absurdo, ou que comprometam a experiência, mas estão lá, e não consigo ignorar.

O series composition é o maior problema desse corte de Spy x Family. Ele é bastante inconstante em alguns pontos que acabam comprometendo um pouco o ritmo da temporada. E ele é inconstante justamente por não decidir o que quer ser, se ele quer ser sua própria coisa, ou se quer seguir a risca o mangá. Vou dar dois exemplos para ficar mais claro: o episódio do castelo e os dois últimos episódios.

Esses dois casos seguem filosofias distintas de adaptação. Enquanto o episódio do castelo, onde todos atuam para resgatar a Anya, se aproveita da mídia em que está e dá um sopro novo de vida para os acontecimentos, os dois últimos episódios se contentam em mimicar o ritmo do mangá. Para os leitores que só viram o anime, toda aquela cena escalafobética dos espiões contra o Twilight dura apenas algumas páginas do mangá. Por mais que seja divertido, está longe de ser tão catártico quanto o anime conseguiu ser.

menina de cabelo rosa falando séria para a outra garota que está de costas
As caras e bocas da Anya fazem esse anime.

Já olhando para o fim da temporada, ou o meio de temporada, temos uma grande brochada. O episódio 11 tinha 2 ganchos melhores que o final do 12, que mais soou como uma reticência. Poderíamos terminar a temporada com a Anya ganhando a estrela, pensando sobre o que nos aguarda no futuro. Ou então poderíamos ter terminado com a promessa do plot do cachorro-bomba. Mas terminamos com um episódio aleatório de missão extra. Uma simples troca de ordem dos episódios já resolveria este problema.

Só que não é só isso que é estranho nos episódios 11 e 12. O ritmo do 11 é todo bagunçado, fica muito claro que foram dois capítulos do mangá costurados em 1. Os capítulos isolados não causam problema, afinal têm sua própria unidade. Mas quando adaptados juntos num mesmo episódio, o episódio fica sem foco. E quanto ao décimo segundo, por se tratar de uma missão extra no mangá que foi lançado em uma revista diferente, tem toda uma parte de reintrodução do conceito, servindo como porta de entrada para novos leitores. Com a publicação em outra revista (no caso a Weekly Shonen Jump principal), a decisão faz sentido, agora numa narrativa serializada o último episódio reintroduzir tudo fica completamente bizarro. Se ao menos ele fosse um OVA, isso seria mais desculpável.

Então eu espero que, nas próximas temporadas, nós tenhamos mais “Resgates da Anya” e bem menos episódios 11 e 12.

spy x family, mãe e filha felizes abraçando pelúcia de pinguim
Sorrisos que aquecem o coração.

A sociedade de Spy x Family

Entrando um pouco no tempo em que se passa Spy x Family, temos algo interessante. Ele é obviamente uma versão escrachada da Guerra Fria. Isso é relevante por dois motivos: primeiro por ser uma grande homenagem/brincadeira com histórias pulp de espiões, mas também por ser parte do tema de Spy x Family. Pode parecer um tanto quanto óbvio, mas Spy x Family é sobre máscaras sociais e desempenho em sociedade.

Mas falando um pouco sobre a grande homenagem, Spy x Family é, antes de mais nada, uma comédia boba. Todo o plano mirabolante de ter fazer seu maior espião brincar de casinha para se aproximar de um figurão através do colégio é bobo. Ele coincidentemente ir formando uma família com uma assassina que esconde ser assassina, uma filha que é uma experiência genética fracassada e um cunhado que trabalha na agência de inteligência é bobo. E é propositalmente bobo e tosco justamente para que possamos manter o clima leve da série. Se o anime encarasse a espionagem de maneira realista, todo o conceito da série cairia por terra.

Mesmo sendo fantasioso, a ambientação é vital para a história que Spy x Family quer contar. O clima de desconfiança e vigília constante está, em maior ou menor grau, pesando em todos os personagens. A Yor, por exemplo, se casa por conveniência. A personagem entra para a família simplesmente por que ser solteira na idade dela é motivo de desconfiança. O Damian, segundo filho da família Desmond, tem pincelado em vários momentos o quanto o seu nome é um peso para ele. Mesmo sendo uma criança na primeira série, não performar tão bem quanto o irmão mais velho já faz ele ser visto como cidadão de segunda classe. Toda a agressividade do personagem vem desse sentimento de inferioridade de uma sociedade de aparências.

A Academia Éden, o grande palco da Operação Stryx, é um grande teatro de fantoches. Existem uma série de regras e tradições sobre como cada um deve se portar e é em cima disso que ela opera. Henry Henderson, o professor de história da Éden talvez seja o exemplo mais escrachado dessa sociedade. Então todos os personagens estão, em maior ou menor grau, atuando conforme a sociedade espera deles. Como nossos protagonistas, temos a família falsa, os Forger.

homem de cabelo lorio e mulher de cabelo preto sorriem e fazem coraçãozinho
Um lindo casal de recém-casados perfeitamente normal…

A família Forger

A família Forger é formada por um médico (espião), uma secretária (assassina) e uma estudante (telepata). Cada um dos personagens opera em dois lados da sociedade, um falso e outro verdadeiro. Spy x Family então começa, desde seu primeiro episódio, a brincar e a mesclar esses dois campos. Até que ponto tudo aquilo é só uma missão do Twilight? E quando parou de ser, se é que parou, só um casamento de conveniência para a Yor? Tudo isso vai sendo posto em cheque, mentido e desmentido, conforme os episódios passam e a família Forger toma forma.

O espectador é um coringa, um cúmplice da pequena telepata Anya. Somos os únicos a termos acesso ao tabuleiro completo, os únicos a ver através do teatro de aparência dos personagens. De certa forma, temos uma visão até mais completa que a da própria Anya. Então é muito mágico pensar que, nós, que vemos todas as mentiras, ainda assim nos apaixonamos pela família Forger. Ainda vemos verdade naquelas relações de mentira, antes mesmo dos próprios personagens notarem.

Falando dos personagens em si, o Loyd é o melhor trabalhado da temporada. Durante todo o cour, é notável o quanto ele cresce e se desenvolve enquanto pai da família. Se apegando cada vez mais as duas outras integrantes da família Forger. Já a Yor sofre um pouco com o roteiro, por mais que ela seja muito engraçada, falta para a personagem um pouco mais de agência. O Loyd e a Anya têm seus próprios núcleos e vontades, mas a mãe da família fica com um papel mais de fundo para o roteiro.

Spy x Family, família Forger comemorando a admissão na escola
Nossa família de mentira favorita.

O coração de Spy x Family

E a Anya é simplesmente o coração desta série. O sucesso ou o fracasso de Spy x Family é e será sempre completamente dependente do quão bem o roteiro trabalha a personagem.

Ao menos nesses primeiros episódios, o trabalho é soberbo. A Anya é doce, expressiva, carismática e hipnotizante. Sempre que a personagem está em tela, rouba os holofotes para si, seja pelas suas caras e bocas, seja pelos seus comentários. Esse é um bom momento para parabenizar o trabalho de legenda da Crunchyroll, as falas estão ótimas, cheias de personalidade e carisma.

O melhor momento da temporada inteira é a disputa de queimada da Academia Éden. Com direito a montagem de treinamento estilo Rocky Balboa e drama de final de campeonato. Mesmo que seja uma disputa qualquer na aula de educação física da primeira série. Se o series composition é inconstante, o mesmo não pode ser dito da animação. É visível o cuidado que a produção teve para maximizar as cenas de impacto e as piadas físicas, que já eram destaque no mangá.

garota de cabelo rosa de baixo para cima com pose de heroína
Apaixonar-se pela Anya é inevitável, não tente impedir que isso aconteça.

A proteção do cotidiano

Spy x Family então funde a criação de uma família com uma missão furtiva. A série faz isso justamente por esse ser o objetivo. Seja do Loyd, da Yor, até mesmo do controverso Yuri, todos eles fazem o que fazem para proteger os que amam. E é justamente este o trunfo da série, passamos tanto tempo no cotidiano porquê é justamente em defesa dele que fazem o que fazem. São as bobeiras e interações do dia a dia que dão peso para a Operação Stryx. Sem isso, seria uma história completamente genérica de salvar o mundo e paz mundial vazia, justamente a série sátira que a Anya assiste, Spy Wars.

Família Forger sentados em um carro vendo o avião passar.

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