Godzilla: Ponto Singular merece a sua atenção – Review

Godzilla: Ponto Singular ou Godzilla: SP é um anime de 13 episódios lançado mundialmente em 2021. A série é uma produção original do estúdio Bones, com direção de Takahashi Atsushi (Ride Back, Blue Exorcist: The Movie) e series composition de Enjou Tou. A série foi lançada no Brasil pela Netflix.

Sinopse: Unidos por uma música misteriosa, uma estudante e um engenheiro lideram a luta contra uma poderosa força que pode destruir o mundo. (Fonte: Netflix)

Eu odeio o jargão que tal peça de arte não é pra todo mundo. Primeiro porquê não existe peça de arte para todo mundo. Segundo porquê fica parecendo que sou um messias que vem trazer a cultura para as massas burras e incultas que só assistem filmes da Marvel. Por isso mesmo, não direi que Godzilla Ponto Singular não é pra todo mundo.

Ao mesmo tempo eu entendo perfeitamente o motivo dele não ter estourado, aliás foi um lançamento bastante modesto. Godzilla: Ponto Singular é, antes de mais nada, um sci-fi bastante calcado na realidade. Mais do que isso, Godzilla: Ponto Singular é uma série bastante lenta e que não tem a menor pressa de cozinhar as coisas em banho maria até chegar onde quer chegar.

Essa mistura particular, faz com que você precise estar em uma mentalidade muito específica para aproveitar a história. É o tipo de série que não se importa muito com as pessoas que ficam pelo caminho e acredita que mais vale um nicho apaixonado que uma multidão amena. Isso posto, eu posso afirmar que Godzilla: Ponto Singular vale o investimento.

Mas vamos começar do começo, falando um pouco sobre a equipe de produção dessa série. O diretor é o Takahashi Atsushi, que apesar de ainda não ter uma série bombada no currículo, trabalhou como assistente de direção em A Viagem de Chihiro e Kemonozume. Então não pense que está vendo o trabalho de um diretor novato, o Atsushi carrega a série muito bem em suas duas pontas, tanto como um sci-fi bastante denso, quanto em um survival com filme de kaiju. Agora o aspecto que me deixou mais surpreso foi com toda certeza o roteiro, escrito pelo estreante Enjou Tou.

Talvez estreante não seja o termo certo, mas acontece que essa é a primeira vez que o Enjou trabalha como series composition de uma série de anime. Ele é mais conhecido como escritor, com uma porrada de prêmios no Japão e até mesmo um ou outro nos Estados Unidos. E antes de ser um escritor ainda, era PhD em matemática e graduado em física, e posso afirmar, isso tá claro no texto dele.

Godzilla: Ponto Singular é uma história carregadíssima de termos científicos. E são sempre termos que realmente encaixam com o que eles estão falando, mesmo que transferido para uma realidade fantástica de monstros gigantes. Acima de tudo, é realmente refrescante termos uma série com Singularidades e paradoxos temporais que, em nenhum momento tem uma cena de um personagem dobrando uma folha de papel e furando com um lápis, ou então explicando pela quinquagésima vez que o gato está vivo e morto dentro da caixa. Godzilla: Ponto Singular confia na bagagem e inteligência do espectador e traz um vocabulário muito mais sofisticado. Mesmo que ele vá explicar o funcionamento das coisas, cabe ao espectador acompanhar as discussões entre os personagens.

Isso não é um trabalho feito de forma perfeita, especialmente ali pela metade da série, começa a ficar um pouco enfadonho a discussão, e o ritmo da série dá uma boa decaída. Por sorte, depois do episódio 9, o roteiro recupera o folego e galopa para seu ato final.

Mas avançamos demais, então voltemos para o começo. Como eu disse, Godzilla: Ponto Singular é um slow burner. Ele vai passo a passo, apresentar vagarosamente todos os personagens, de onde eles vêm, suas organizações e conexões, e nisso ele vai muito bem. Nunca chegamos a ter personagens profundos, ou com grandes arcos, o anime tá muito mais preocupado nas brincadeiras e experimentações macro com leis da física. Mas o roteiro nos dá o suficiente para que nos importemos com todos eles e torçamos para que consigam sair dessa. As interações entre eles são divertidas, o elenco é bastante carismático, e carrega bem o drama emocional da série.

Falando de drama emocional, vamos falar um pouco do aspecto survival. Uma coisa bastante interessante nessa série é o seu ritmo, como já dito algumas vezes. Por não estar preso ao tempo de um filme, Godzilla: Ponto Singular pode se permitir levar um longo tempo de derrocada da civilização. Um bicho estranho aqui, outro ali, as pessoas acham exótico, estranham, criam bonecos de pelúcia, mas tá tudo bem, é só um Rodan qualquer. As coisas vão escalando, e escalando, até a chegada do rei dos monstros, Godzilla.

Agora é um bom momento pra falar dos kaijus presentes nesse anime. Como não sou grande conhecedor, não consigo apontar nenhum monstro mais clássico, fora o próprio Godzilla, que dá as caras aqui. Isso é bom, especialmente considerando que temos um gancho pra segunda temporada no pós-créditos. E falando dos monstros em si, eu sou conflitado quanto a eles.

O design de cada criatura é muito rico e diferente do que eu esperava. A equipe de produção parece realmente ter tentado ao máximo puxar pra um visual mais monstro mitológico das criaturas. Agora a qualidade dos modelos em computação gráfica é horrível. É decepcionante ver que o estúdio Orange, que fez Beastars e Houseki no Kuni está creditado como animador do CGI. Em muitas horas era tão feio e destoante que me tirava da cena. Em especial quando personagens 2D e 3D têm que interagir. Os Rodans, pterodátilos que se alimentam de ondas de rádio, são um dos que mais sofrem, em especial quando estão em grande quantidade na tela, a baixa qualidade das texturas fica gritante. O que menos sofre acaba sendo o Jet Jaguar, talvez por seu design menos detalhado e cheio de texturas.

Falando em design, o cenário final quando o Godzilla entra em cena, com o nascimento das plantas bizarras e tudo mais é incrível. A série consegue passar muito bem com o cenário o clima de apocalipse iminente que a série precisa. Também queria elogiar o character design feito pela Kazue Kato, autora de Blue Exorcist, que nos trouxe um elenco bastante diverso.

Agora chegamos no momento de falar mais um pouco sobre o roteiro de Godzilla: Ponto Singular. Como essa é uma série que pouca gente assistiu, e que foca bastante no mistério e na buscas dos personagens em entender o que está acontecendo, fica o aviso de spoilers daqui pra frente. Se você não viu e acha que é uma série que pode te interessar, eu recomendo. Adorei a jornada, com toda certeza é um dos meus destaques do ano. Vai lá, assiste, depois volta pra cá. Aos que ficam, vamos lá falar sobre tudo que acontece nessa série…

Acho que a primeira coisa que realmente me surpreendeu no roteiro foi o uso do Pelops II e do Jet Jaguar. Por ser ambientado no futuro, Godzilla: Ponto Singular lança mão da presença de inteligências artificiais bastante poderosas. Quando eles foram apresentados, fiquei com um medo gigantesco de serem uma muleta muito fácil que resolveria qualquer conflito antes mesmo dele surgir. Não entenda errado, ambas as inteligências ainda fazem bastante do trabalho bruto, mas são assistentes que operam de acordo com o raciocínio de seus parceiros humanos. Uma passagem logo no começo é o exemplo disso.

Em dado momento, o Yun está preso em um armazém com mais umas pessoas, do lado de fora estão quatro Rodans. Também tem um ônibus escolar capotado e dentro dele uma garota em perigo. O chefe dos engenheiros do Jet Jaguar, Gorou, decide ir salvar a garota sem realmente um plano. Nessa altura da história, já sabemos que os Rodans são atraídos por uma frequência sonora específica. O Yun então tem o insight de fazer um flecha sonora que assobia na mesma frequência que atraia os Rodans. Então o planejamento e o conceito físico parte do personagem humano, enquanto o processamento para projetar a flecha fica por conta da IA. E essa regra rege o roteiro até o final, sempre parte dos humanos a decisão para algo se mover na trama, o que é algo que faz as IAs, mesmo que extremamente poderosas, não pareçam roubadas ou saídas fáceis demais.

E mesmo essas IAs precisam suar para lidar com todo o caos gerado pelos kaijus. Godzilla: Ponto Singular trabalha o cenário do que aconteceria se um objeto impossível existisse. No caso da série, é um objeto que pode gerar energia infinita, que acaba em nossa dimensão. As leis da física passam então, lenta e constantemente, a se dobrar e se tornarem não mais leis, mas hipóteses. Com isso, os humanos e a terra como conhecemos param de ser uma certeza, e passam a ser uma possibilidade dentre muitas. E a explosão exponencial de possibilidades é o que gera a Catástrofe que pode causar o fim do mundo.

A série também brinca com conceitos de presente passado e futuro de dois jeitos. Primeiro no quesito do real e do mito. A série faz questão de martelar que se algo pode ser imaginado, então esse algo existe. Dentro da mitologia da história, se algo é parte de um folclore, é porque essa informação foi transmitida para o passado, e ela representa um kaiju real no futuro. É a ideia que ela aborda do ovo com informação infinita. Onde o ovo já sabe quais serão seus descendentes infinitamente, pois o futuro molda o passado.

Mas a série também brinca de uma outra forma, com o tempo de processamento. Basicamente existem uma série de problemas computacionais que levariam mais tempo que o universo para serem calculados, a menos que você já saiba a resposta. E o final é uma brincadeira com essa ideia justamente, onde o Pelops II e o Jet Jaguar, agora fundidos, realmente tiveram infinitos loops temporais para conseguirem calcular o protocolo perfeito. Ao mesmo tempo que eles já possuíam essa informação desde o começo. É uma espécie de anti-paradoxo do avô, onde codificar a informação de forma com que ela não parecesse informação impede o colapso do universo.

Parece contraditório, a resposta vem das IAs, mas eu mesmo disse que as IAs são apenas auxiliares para os personagens humanos, mas não é. Acontece que a história deixa muito claro, por mortes de personagens, pelo esforço e sofrimento para alcançar aquele final, que tudo só é possível por causa do Yun e da Mei que correram atrás das respostas. De forma alegórica, dos infinitos Yuns e das infinitas Meis que buscaram as respostas para as questões e não pararam de se perguntar e tentar entender tudo aquilo. Ciência funciona dessa forma, pedacinho por pedacinho, geração após geração, o conhecimento vai se acumulando, se aprimorando, se tornando mais concreto. Então, ao final de tudo, a humanidade vence o mito com o esforço de incontáveis engenheiros e cientistas, tomando para si próprios o destino e o compromisso de seguir em frente.

Godzilla: Singular Point é um dos melhores sci-fis que eu já assisti na mídia anime. Denso, cheio de discussões e questões teóricas, mas sem perder o lado pipocão da coisa. Considerando os tempos que vivemos, cheio de teorias da conspiração e anti-ciência, acho que ele também carrega uma mensagem importante, uma mensagem do esforço coletivo, através das gerações, mas que pode impedir a Catástrofe para a qual parecemos estar rumando.

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