Dementia 21: Envelhecer é preciso – Review

Dementia 21 é um mangá de 7 volumes lançado no Japão em 2011. Com arte e roteiro de Shintaro Kago (Fraction, Paranoia Street) o mangá foi publicado digitalmente na COMICLOUD (Nobuna Girl, Quadriflogio Due). A edição brasileira compila os 17 primeiros capítulos em um volume único de 280 páginas, publicado pela Todavia.

O volume utilizado nesta review foi fornecido pela editora.

Sinopse: Yukie Sakai é uma cuidadora de idosos da empresa Green Net. A melhor delas. Por isso mesmo acaba despertando a inveja de uma das veteranas da empresa, que possui um caso com o gerente e quer seu lugar de protagonismo de volta. Isso faz com que o gerente comece uma série de sabotagens a Yukie, que passa a ser enviada aos casos problema da empresa. E são esses casos que acompanhamos em Dementia 21.

Shintaro Kago no Brasil

Shintaro Kago é, provavelmente, um dos nomes mais reconhecíveis do terror japonês em quadrinhos. Obviamente não alcança o nível de Junji Ito, mas mesmo assim é um nome bastante difundido na comunidade otaku.

Então é no mínimo curioso pensar que o artista não tenha dado as caras de maneira consistente no país. Inclusive, Dementia 21 é o primeiro trabalho do autor a aparecer por aqui. E começamos com o pé direito.

O projeto feito pela Todavia está muito cuidadoso, num formato parecido com o selo Tsuru, da editora Devir. Com orelhas, capa cartão e offset de alta gramatura que não deixa o preto vazar por entre as folhas. No âmbito da tradução, teve só uma coisinha que me deixou incomodado, quando em um diálogo uma personagem diz: “me reconciliar? Tô fora! Vou pegar todo o dinheiro e as ações e ir embora.” Algo que, mesmo pra um mangá de comédia, é muito tentando ser jovem descolado.

Falando em comédia, é bastante curioso o quanto Dementia 21 é comédia. Os trabalhos do Kago normalmente mesclam o gore e o grotesco com o non sense, mas Dementia vai na contramão disso sendo a obra mais leve do autor.

A melhor idade

Isso não quer dizer que o texto seja menos ácido. Muito pelo contrário, Dementia 21 abusa do absurdo para apontar o verdadeiro problema social da terceira idade. Algo nos moldes do Roujin Z, do Katsuhiro Otomo.

O mangá perpassa pelo abandono, abuso e negligência em mais de uma ocasião. Seja abordando pela visão do pai abusivo, como no capítulo da dentadura. Ou pela visão do filho negligente, como no dos condomínios. Shintaro Kago evita simplificações rasteiras. Ele entende que é um problema complexo, com muitas variáveis e evita o discurso pronto do “mas é seu pai, você tem obrigação de cuidar dele”. As vezes o seu pai não merece o cuidado.

E o mangá não se limita ao abuso puro e simplesmente. Dementia 21 aborda também os papeis sociais, com o maravilhoso capítulo das competições de idoso. Nesse capítulo, a personagem precisa pegar uma velhinha e esmagá-la ao máximo para que a mesma sirva no molde de “idoso”. É quase um processo inverso, com o personagem partindo de uma forma mais complexa para se tornar um esteriótipo.

Outro capítulo muito interessante é o que aborda o isolamento social do idoso, no já citado capítulo dos condomínios. O capítulo em questão é todo focado no quão importante para aqueles senhorzinhos é se sentirem relevantes uns para os outros. A coisa mais importante de todas. Mesmo que para isso eles precisem criar uma sociedade tirânica de prédios infinitos.

Ou a questão sobre os funcionários públicos aposentados, esquecidos ao relento após darem a vida para sociedade, como representado no capítulo dos kaijus e no battle royale de idosos. Esses dois capítulos trabalham a grande ideia de como assim que uma pessoa deixa de ser produtiva para a sociedade, ela passa a ser vista como um estorvo. Isso é particularmente verdade na cultura japonesa, que tem uma visão muito mais sobre o coletivo do que sobre os indivíduos.

E as várias menções a suicídio de idoso durante todo o quadrinho, por parte do próprio idoso ou por parte da família, não me deixam mentir. Isso fica especialmente claro no capítulo dos fios, que busca mostrar a hipocrisia de um sistema onde ninguém quer ser o responsável pela morte de alguém, diluindo a culpa por várias pessoas.


Competição e mercado de trabalho

Dementia 21 não se resume a abordar apenas o problema social da terceira idade. O próprio inicio do mangá é um grande apontamento para o exagero da competição no mercado de trabalho e no trato com o cliente. A Yukie só lida com o que lida por causa da inveja de uma veterana. Afinal, como uma novata pode ser melhor do que eu?

Para além disso, o próprio sistema de metas se importa muito pouco com o bem estar dos idosos em si. Não é atoa que a maior parte deles acaba debilitado ou morto ao final de cada história. O importante são as métricas, o clique no botãozinho de gostei muito, e não o tratamento humano.

Ainda falando da personagem da Yukie, temos um vislumbre de leve da vida da personagem no capítulo do treinamento. E temos uma mãe possessiva, que coloca o peso da própria vida na filha. Yukie é tratada como culpada por ter nascido e “estragado” a vida da própria mãe, que foi impedida de continuar trabalhando pelo marido. Então, a mãe dela empurra suas frustrações e sonhos para que a garota cumpra. E como a Yukie é uma folha em branco, um avatar pelas vontades da mãe, pouco sabemos da personagem em si.

Outro momento que toca em assuntos contemporâneos é o breve momento das idols. Uma coisa é certa, o Shintaro entende muito de idol, a maior parte dos personagens é uma referência a cultura pop japonesa. E como entendedor, ele enxerga toda a problemática do ideal de pureza que pesa sobre elas. Não chega a fazer um ensaio, mas é uma cutucada pertinente.

Escalada do absurdo

Mesmo com todo esse background social e crítico, Dementia 21 segue sendo um mangá absurdamente engraçado. E absurdo é a palavra perfeita para se usar aqui.

Dos já citados battle royale de velhos, a monstros gigantes, lutas no espaço em cadeira de rodas, poderes paranormais de demência, e loops temporais, vale tudo aqui. E em todo o capítulo ele cria uma sensação de escalada sem fim até uma punchline final.

Basicamente a estrutura de cada capítulo é pegar um certo conceito ou subgênero de terror, desenvolve tudo que consegue dentro desse tema, e fecha o capítulo. É um controle narrativo invejável por parte do Shintaro dentre uma grande miríade de estruturas do terror.

Claro que nem todo o capítulo funciona, em especial, o capítulo que começa com a horda de idosos é bem ruinzinho. Mas quando funciona, funciona muito. Um destaque para o capítulo do motorista aposentado, mais de uma vez tive que parar a leitura para dar risada.

Talvez a única crítica mais severa ao mangá é que ele começa parecendo uma história com começo, meio e fim, com todo o plot da empresa e isso vai sendo completamente esquecido. Ao ponto em que a história da Yukie em si não tem nenhuma conclusão e o volume termina num capítulo qualquer. O que fez muito mais sentido quando eu pesquisei e descobri que esse volume compila apenas metade dos capítulos lançados de Dementia 21.

Mesmo assim a leitura é muito rápida e prazerosa, e espero que esse seja apenas o primeiro de uma nova leva tanto de ero guro quanto do próprio Shintaro Kago no Brasil.

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