O poder da breguice de Macross: Do You Remember Love?

Se você tem alguma familiaridade com franquias de mecha, sabe da eterna rivalidade entre os fãs de Gundam e os fãs de Macross. Então, depois de uma péssima experiência com Macross Delta (2016), eu precisava entender o que as pessoas viam nessa franquia. E decidi voltar as origens, aos tempos mais simples, até Macross: Do You Remember Love?

Macross: Do You Remember Love? foi lançado para o cinema em 1984, contando com direção de Shoji Kawamori (criador da franquia), e Noboru Ishiguro (Legend of the Galactic Heroes), e conta a história de uma guerra entre dois povos alienigenas, os Zentraedi e os Meltrandi, com os humanos no meio do fogo cruzado.

O longa tem como objetivo ser uma versão alternativa da série original, Macross (1982-1983), com 36 episódios. Para quem se importa, Do You Remember Love? Não é considerado canônico, e sim um filme muito famoso dentro do universo de Macross 7.

Uma história dentro de uma história.

Algo que sempre me incomodou dentro da franquia Gundam, são seus constantes filmes que recontam as séries de TV. Digo isso não porque sou contra mudanças de mídia, mas por não serem reais mudanças de mídia.

Os filmes de Gundam sempre foram uma bagunça. Porcamente estruturados, retalhando as séries da qual faziam parte em pedaços muito pouco inteligíveis, com muito mais cara de recaps gigantescos do que filmes por si só. A partir disso que me interessei tanto pelo filme do Macross.

Digo isso por estar atualmente vendo a série original, e entre um episódio e outro, decidi dar play no filme, para ver se se tratava de uma versão resumo. Qual não foi minha surpresa ao ver que o filme “já começa do meio da série”. E foi naquele ponto que eu percebi, não era uma simples produção caça-níquel, tentando capitalizar em cima de animações pré prontas, apenas rearranjadas, existia um cuidado aqui, eles estavam fazendo um filme.

E por se permitir não ser canônico, Do You Remember Love? Não precisa encaixar todos os plotpoints, não precisa contar todos os 36 episódios para manter o lore. Pode se permitir ser a própria interpretação de uma mesma história, uma história dentro da história.

Adaptar é viver

Então nada mais justo do que começar a história em um ponto diferente. Enquanto a série original começa no dia da inauguração da Macross, nave interestelar que caiu na Terra e foi remontada, começamos 5 meses depois disso. A Macross já está perdida no espaço. O protagonista, Hikaru Ichijou já é um dos pilotos da Valkyre, 5 meses já se passaram.

Ao dizer isso, pode parecer problemático, onde está o drama do Hikaru em não querer ser um piloto de guerra? Ora, está na série original. Como eu já disse, Do You Remember Love? precisa ser visto como sua própria coisa, ele se interessa em trabalhar os temas centro de Macross, não necessariamente todos os seus plot points.

Essa escolha não poderia ser mais acertada, com uma duração de pouco mais de duas horas, não caberia de maneira alguma esse estágio inicial, e sejamos sinceros, pegar a história a partir do meio da guerra, além de ousado, é muito refrescante para o mundo dos mechas. Que tem a tendência de querer mostrar absolutamente todos os passos do piloto, seja em flashback, seja no início.

Aqui, pouco importa como Hikaru virou piloto. A parte interessante do filme é ver como ele vai interagir com as duas personagens que compõe seu triângulo amoroso. A idol Minmay Lynn, e a tenente Misa Hayase.

Um desbunde visual

Talvez seja um momento interessante para dizer que Macross é uma franquia de mecha diferente. Isso acontece por ser um “mecha-idol”, com a música fazendo parte importante da construção do universo, ressoando tematicamente (ao menos neste filme). E a trilha de Do You Remember Love? é excelente, tanto a cantada quanto a apenas de fundo. E são muitas as músicas cantadas durante o filme.

Elas estão sempre em sintonia com o momento do roteiro, é notável o cuidado na escrita de todas elas, que ficou por conta da Mari Iijima (Minmay Lynn). Mas o visual não fica para trás. Com exceção de alguns problemas de desfoque vindos da remasterização, Macross é um absurdo. Todos os enquadramentos cuidadosamente trabalhados, a composição de cores lindíssima, o trabalho primoroso na animação das batalhas. É difícil acreditar ser uma produção do começo dos anos 80.

Um destaque fica para uma tomada logo no começo do longa, que uma explosão ocorre, e a gravidade dentro da Macross se altera, sendo acompanhada pela mudança do eixo da câmera. A cena é seguida por uma sequência lindíssima de um dos caças passando por dentro do ambiente populado da nave tentando alcançar uma personagem em queda livre.

Mas longe de ser apenas um show-off, um visual pelo visual. O trabalho primoroso de direção e ambientação proposto pela equipe tem uma função real e palpável. Compensar pela falta de tempo. Em um espaço de duas horas, Macross precisa apresentar esses três personagens, trabalhá-los, criar conflitos, enquanto apresenta o universo da guerra.

Então, nada mais justo do que descarregar parte disso no trabalho de cenários, músicas, e de expressões corporais, mas nem tudo é perfeito.

Amor é um deserto e seus temores.

Por mais que Do You Remember Love? tente, não consegue trabalhar tão bem assim o triângulo amoroso. Isso acontece principalmente pela passagem problemática de tempo e repetição de plot. Falando primeiramente do segundo, ambas as vezes em que o Hikaru se envolve com uma das garotas, ele está em uma situação que o força a fazê-lo, da primeira, eles ficam perdidos dentro da Macross, da segunda, em um planeta.

São sempre momentos em que o roteiro força o isolamento dele com a personagem, algo que poderia funcionar se tivesse sido feito uma única vez, mas duas, no mesmo filme, é um pouco demais.

Para além disso, o tema principal do filme é sobre…você lembra do amor. Digo, por mais óbvio que pareça, é a verdade. As duas raças em guerra estão assim a tanto tempo, que perderam qualquer conceito de cultura, algo verbalizado pelo roteiro. Vale notar que uma raça é feita apenas de homens a outra, mulheres. Um homens são de Vênus e mulheres de Marte literal.

Então, dado esse contexto, é no mínimo estranho que os personagens só se entendam, e se apaixonem, em momentos extremos de sobrevivência. Dito isso, olhando os momentos de forma isolada, são tratados de forma bastante bonita e solene, pelo roteiro.

Mas faltou falar sobre o tempo, e para isso eu vou precisar entrar em spoilers, esteja avisado.

O  Hikaru fica com a Misa. Certo, mas qual o problema com isso? Bom, o problema tá relacionado com duas coisas. Primeiro por ele passar uma parte consideravelmente maior do filme interagindo com a Minmay. Desde eles perdidos na nave, pro passeio noturno, até o voo LINDÍSSIMO pelos anéis de Saturno.

A questão, é que toda essa passagem de tempo, mais ou menos metade do filme, são três dias na narrativa. Enquanto a parte que ele passa com a Misa, basicamente uma longa cena na Terra, é um mês na narrativa. Então eu entendo, num plano conceitual, que ele e a Misa tiveram muito mais tempo juntos, mas isso não se reflete na estrutura do filme.

Então, por mais que no papel, seja uma ideia ótima, o Hikaru amava uma idealização da Minmay, a IDOL Minmay, não a pessoa Minmay, essa conclusão perde boa parte do peso por você não ver os passinhos sendo dados.

Ainda no peso das coisas, a morte do senpai entra na mesma categoria. Eu sinto a mudança que isso descarrega no Hikaru, foi culpa dele no final das contas, mas eu não consigo sentir a morte de um personagem que teve duas cenas sendo o machistão anos 80.

E a última coisa nessa questão, é o momento que o Hikaru, já quebrado pela morte do meio que professor dele, chega junto com a Misa na Terra. A Terra é o grande objetivo deles, na série, uma vez que eles estão perdidos no espaço. São seis meses tentando voltar para casa. Mas no filme, nada disso parece realmente ter peso.

Então, quando descobrimos que a Terra virou um desertão radioativo, o impacto significa muito pouco, quase nada, para o espectador.

Protocultura

Ainda falando do nosso querido planetinha, a cena mais bonita e solene do filme é apresentada aqui. Descobrimos que uma raça antiga, a Protocultura, se desenvolveu, e no processo, se dividiu entre homens e mulheres, por fim criando as duas raças alienígenas. Então, se arrependendo da destruição, alguns dissidentes decidem por criar a raça humana, e deixar uma cidade escondida, para a qual retornariam no futuro.

Os protagonistas então, acabam por encontrar a cidade, agora nada mais do que ruínas. Aquela civilização antiga, agora não era nada mais que uma história esquecida, e suas únicas testemunhas seriam Misa e Hikaru, os últimos num planeta desolado. Ambos entram numa casa, e fazem um jantar de mentira, por que certas coisas nunca mudam.

Eu genuinamente não esperava que um filme de mecha, com aviõezinhos que viram robô enfrentando gigantes meio ciborgues, me entregaria uma cena tão humana, mas lá estava ela.

Então o filme segue, e os alienígenas são vencidos pelo literal poder do amor, de uma idol cantando no espaço. É brega, sim, muito, e eu o amei por isso.

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