O inconstante Promised Neverland

Promised Neverland é uma peça interessante, que demonstra a mudança editorial que a Shonen Jump vem passando nos últimos anos. Em busca de uma maior diversidade de histórias, a revista que antes era conhecida quase que exclusivamente por seus mangás de porrada possui hoje, como um dos seus mais importantes títulos, um thriller de sobrevivência.

Dado esse histórico, não é de se estranhar que Neverland tenha caído nas graças do público de animes, com sua adaptação feita pelo estúdio Cloverworks (Darling in the Franxx), com direção de Mamoru Kanbe (Elfen Lied). A obra original, ainda em publicação, tem roteiros de Kaiu Shirai e arte de Posuka Demizu, lançado por aqui pela Panini.

É tipo Death Note?

Não. Mas explicando de maneira mais profunda. A semelhança entre as duas séries está apenas por compartilharem um gênero, mas dentro dessa seara, as diferenças ficam claras. A começar por sua estrutura, aqui, não temos um embate direto dos intelectos dos (não tão) geniais personagens. É uma série muito mais sobre movimentos indiretos e reações, do que realmente planejamentos a longo prazo e planos e contraplanos.

Além disso, os personagens ditos geniais, estão muito mais em cooperação que se enfrentando, e mesmo que a história diga quão absurdamente inteligentes eles são, você não sente isso realmente presente na trama. Enquanto Death Note colocava seus personagens de forma quase angelical com um intelecto absurdo, muito disso vindo da direção enérgica e exagerada.

Já Neverland apresenta personagens muito mais verossímeis em nível de inteligência. Ao mesmo tempo em que isso é um ponto positivo, acaba por ser um demérito em momentos que a série escorrega para um lado mais fantasioso, como o Ray ter memória desde antes de seu nascimento.

Então, não, não é tipo Death Note. Mas achei importante estabelecer isso, já que é uma comparação que…todo mundo já fez, as semelhanças estão em ser um thriller, e ter sido serializado na Jump.

Re-experienciando uma história

Antes de continuar, uma coisa precisa ficar registrada. Eu não consumi Neverland pela primeira vez através do anime. Eu acompanho o mangá desde seu lançamento, semanalmente. Por isso, a minha visão do anime não é “pura”. Eu já conheço a história, já conheço o futuro, e isso faz coisas mudarem na minha leitura.

Então, querendo ou não, a minha leitura do anime é uma derivação da minha experiência prévia com o mangá.

Isso posto, o anime de Neverland oscila muito em escolhas de adaptação. Existem uma série de escolhas que eu gosto, outras que desgosto, mas não tenho como saber se isso é reflexo da direção, ou de já conhecer a história.

Dito isso, o maior problema de Neverland, enquanto adaptação, foi optar por uma direção mais focada na ação. E isso está espalhado por toda a temporada.

A começar pelos mistérios, um dos pilares nesse tipo de história. Instigar o expectador a querer saber mais sobre aquele mundo, sobre a real intenção daqueles personagens, sobre o destino que eles tiveram, sobre suas segundas, às vezes terceiras, intenções. E o anime não faz isso bem.

A maior parte dos mistérios fica óbvio demais, com a adaptação deliberadamente deixando mais óbvio que sua contraparte em mangá, e em consequência, diminuindo o impacto de suas revelações.

Falando em impacto, o foco em ação também mina alguns deles, não permitindo a história respirar tanto quanto devia em alguns pontos, em especial no episódio 10, quando um personagem pilar da narrativa abandona a casa.

Mas nem tudo são problemas, a escolha de limar os diálogos internos funcionou bem. Na maior parte do tempo, Neverland tem monólogos internos no mínimo dispensáveis. Boa parte deles poderia ser passado de forma plenamente satisfatória através da expressão dos personagens, ou de conhecimento prévio por parte do espectador de como aquele personagem agiria, em contraste a como ele está agindo. E as mudanças nessas duas linhas são muito bem aplicadas pelo anime.

Mas não foi uma mudança perfeita, e isso fica muito claro no personagem da Krone. Grande parte das conversas que a Krone têm consigo mesma eram internos no mangá, mas o anime optou por fazer de forma escrachada, com ela gritando e dançando em seu quarto. Isso é problemático, por que o mesmo anime deixa muito claro a posição que o quarto dela fica. E como isso é relevante para que ela possa ouvir o que se passa nos dormitórios das crianças, e consiga identificar quem sabe a verdade. Então, ter a personagem gritando a plenos pulmões todas as suas maquinações e tramóias, além de pouco crível, deixa um buraco de conveniência, em que por sorte ninguém ouviu.

Azul e Vermelho

Se em partes Neverland com seu ritmo acelerado, o mesmo não pode ser dito de sua ambientação. Boa parte do que faz uma história de terror ou suspense, em uma boa história de terror ou suspense, está no clima que essa história causa em você. No seu desconforto daqueles ambientes em que os personagens se encontram, em ângulos próximos dos rostos, e pouca visibilidade do que se move a espreita.

E talvez esse seja o aspecto mais constantemente bom do anime. Desde os planos em primeira pessoa, que aproximam o espectador ao restringir sua visão a apenas (na verdade a menos) do que o próprio personagem tem acesso. Aliado a isso, por serem reuniões secretas, temos uma casa quase sempre com ausência de iluminação, e por estarmos em primeira pessoa, não sabemos de quem é a visão apresentada pela câmera. Ao mesmo tempo em que pode ser um de nosso protagonistas, pode muito bem também ser a visão da Mama, ou da Krone.

Mas o aspecto que mais se destaca na ambientação, é a composição de cores, principalmente em ambientes noturnos. Um grande problema das produções atuais pra TV de anime é a sua colorização. Parece que todos os estúdios decidiram uniformizar e utilizar a mesma paleta de tons lavados, desde que masterizaram a pintura digital na segunda metade dos anos 2000. E mesmo que nessa mesma temporada tenhamos Mob, ele é a exceção que comprova a regra, ao menos até agora.

Neverland em cenas diurnas apresenta a sua mesma paleta número doze de tons pastéis, nada de muito destaque. Mas as coisas mudam durante a noite. O anime não tem medo de utilizar tons de azul, ir além de um simples “vamos escurecer todas as cores, afinal noite”, e deixa uma belíssima tonalização azulada. Essa tonalidade, além de diferente, comunica muito melhor o medo que aqueles personagens estão enfrentando. Mas a jogada de mestre vem ao se adicionar o vermelho.

Cores vermelho-alaranjadas tendem a passar um sentimento de conforto, mas não em Neverland. Em Neverland, a iluminação vermelha é opressiva, de uma coloração propositalmente pouco natural. Se o medo de estar nas sombras é uma constante na psique dos protagonistas, ser encontrado é um problema ainda maior, e luzes simbolizam o controle, só não o controle das crianças. As crianças não possuem um porto seguro naquele mundo, seja nas sombras, seja na luz.

A tríade emocional de Neverland

Neverland possui basicamente três personagens realmente importantes, Emma, Ray e Norman. O resto ou é figurante de luxo, como o Don e a Guilda, ou teve sua presença suprimida na adaptação, como a Krone. Ainda temos a Mama, mas como ela é muito mais uma força, uma presença, uma criatura, que uma pessoa, ela acaba ficando a maior parte do tempo distante demais.

Enfim, dentro dessa trinca de personagens, temos o coração da temporada, que é o Ray. O Ray é aquele que passa pelo maior arco durante o roteiro. Ray já havia desistido de viver desde que soube a verdade, e fez de sua missão salvar seus dois melhores amigos. É ele quem inicia e movimenta as peças, sem perceber o quanto aquilo começa a afetar seu ser, até no final ser arrastado e pela força motriz de otimismo que é a Emma a desejar seguir em frente.

Falando em Emma, uma coisa que é interessante, é o seu ponto mais forte, e mais fraco simultaneamente. Emma é absolutamente ingênua e otimista. Ela quer salvar a todos, e tem certeza que vai funcionar. E isso opera em prol da história nesse primeiro arco, por dificultar a fuga e causar conflitos. Além disso ela amadurece um tanto ao deixar de ser tão superprotetora com seus irmãos mais novos, depois de levar uma dura dos figurantes de luxo.

O problema é que ao mesmo tempo, essa visão otimista da Emma não é questionada em momento nenhum. Ela nunca fica em dúvidas se vai conseguir salvar todas as crianças. Ela sabe que vai, e mesmo que o Ray a antagonise, a ausência de dúvida chega a ser incomoda. Pra além disso, o próprio roteiro nunca a testa (e num futuro próximo não o fará também) para ver qual o limite das suas crenças.

Mesmo que você veja toda a maquinação do plano, e mesmo que ele só funcione com o envio do Norman, ainda parece um pouco fácil demais.

Neverland é uma boa história (pelo menos esse arco), mais do que isso, representa uma mudança de ares na maior revista shonen do Japão. Sua adaptação, mesmo que tropece em alguns passos, ainda faz juz ao material base, e entrega uma temporada de qualidade alta.

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