Enquandrando “clássicos”: Oniisama e…

 

Oniisama e é um trabalho com uma história extremamente rica. O mangá foi publicado na revista Margaret em 1975 e é uma obra de autoria de Riyoko Ikeda, uma das mangakás shoujo mais importantes e populares da década de 70. Ikeda fez parte do Grupo do Ano 24, um grupo de mangakás nascidas próximo do ano 24 da era Showa que revolucionou os trabalhos da demografia shoujo nos anos 70. Suas inspirações ainda trazem à tona a estética de Takarazuka Revue e o arquétipos narrativos de uma Class S novel. Anos mais tarde, a obra foi escolhida como material de adaptação pela Tezuka Productions e foi dado a Osamu Dezaki, uma verdadeira lenda na história da animação, para dirigir. Oniisama e foi um achado para mim. Poucas obras me fizeram aprender tanto sobre aspectos interessantes das mídias de cultura asiática. É uma pena que não se escuta falar muito dele fora dos círculos nicho de Yuri, pois não acho exagero dizer que o anime é um clássico obscurecido pelo tempo.

Irmão, querido irmão… Não há fim para minhas lágrimas…

 

Oniisama e se foca em Nanako Misonoo, uma garota de 16 anos que está prestes a entrar para o ensino médio. Ela decidiu atender a prestigiosa academia Seiran por causa de suas regras que permitem o uso de vestimentas comuns ao invés do uniforme escolar. Mal sabia ela que sua decisão iria lhe colocar no centro de um extenso círculo de intrigas e romances. A escola possui uma irmandade do mais alto padrão. Garotas passam meses ou até mesmo anos se preparando para que possam fazer jus a seleção. Beleza, presteza, inteligência, reputação, família, riqueza e poder são alguns dos aspectos valorizados para a escolha das candidatas a membro. É basicamente um sistema de casta que divide os estudantes em classes. Nanako, apesar da ausência de qualificações, foi escolhida como uma membro em potencial da irmandade e é aí que, para o bem ou para o mal, sua vida muda completamente.

A narrativa se constrói através de um enquadramento interessante: Nanako envia cartas para Henmi Takehiko, um professor seu a quem ela pediu para fazer o papel de um irmão – e que na verdade, é seu irmão mesmo – , compartilhando com ele as suas experiências colegiais. Através deste recurso a perspectiva adolescente de Nanako como narradora da história viabiliza e fortalece seus aspectos melodramáticos. Isto é necessário para aprofundar melhor a personagem no mangá e gerar uma empatia maior no leitor e é especialmente relevante no contraste entre o romance e os outros temas abordados na obra.

A premissa pode parecer simples, mas ela permite que a autora trabalhe temas mais pesados do que o convencional. Riyoko Ikeda explora especialmente bem o bullying. Ela aprofunda na questão mostrando como o ambiente pode influenciar na criação deste tipo de atrito, no quanto essa arbitrariedade é injusta, como a comunicação pode ser manipulada e como ela é essencial para resolução de conflitos e como o problema é algo ruim tanto para a vítima quanto para o agressor. Este é um aspecto da obra que por causa de sua profusão é mais fácil de engajar o leitor, motivo pelo qual o recurso narrativo que mencionei antes é importante para trabalhar o romance. O amor também é importante em Oniisama e, pois ele é a base que permite que possa haver discussões sobre questões que merecem ser tão debatidas quanto o bullying.

 

Décadas de inspirações culminam em um ótimo trabalho

 

Todos os relacionamentos centrais de Oniisama envolvem certas três personagens, as magníficas, de uma forma ou de outra. As ramificações destas relações são especialmente importantes quando envolvem o amor destas garotas. As três são idolatradas na academia Seiran e elas são a fonte de praticamente todos os conflitos da obra:

 

Do lado esquerdo temos Kaoru, do lado direito superior temos Fukiko, do lado direito inferior temos Rei

 

Fukiko Ichinomiya, a presidente do Conselho Estudantil e líder da irmandade. A personagem é a representação de todos os valores idealizados da irmandade em um único indivíduo. Portanto, embora ela nunca tenha feito nada para causar o mau para alguém diretamente, Fukiko criou o ambiente propício para o bullying que ocorre em Seiran.

Kaoru Orihara, representante de classe, capitã do clube de basquete da escola e apelidada pelas garotas de “Kaoru-no-kimi”,  devido a semelhança de seus princípios com a nobreza do príncipe Kaoru em Genji Monogatari. Kaoru esteve um bom tempo afastada da academia devido a problemas de saúde, mas apesar das circunstâncias, ela é uma pessoa que transborda energia e que possui um tremendo amor pela vida.

E Rei Asaka, uma garota rebelde com muito talento para todo o tipo de coisa, de música a esportes. Rei é apelidada pelas garotas da escola de Saint-Just, seu título inspirado no anjo da morte da Revolução Francesa. O apelido veio de sua atitude descompromissada e da distância que a garota cria entre si, as outras pessoas e as situações que ocorrem ao seu redor.

Estas duas últimas personagens trazem à tona uma clara influência de Ikeda, a estética Takarazuka. Fundada em 1914, a Takarazuka Revue é uma trupe de teatro musical cujas performances são interpretadas exclusivamente por mulheres. A atração se tornou um sucesso muito grande no Japão, especialmente entre as mulheres, e embora não tenha começado deste jeito, se tornou um bastião de expressividade feminina. No palco, atrizes tinham papéis masculinos e femininos, lá a mulher poderia se encontrar empoderada e agir fora da etiqueta de gênero estabelecida na sociedade japonesa. Takarazuka teve muita repercussão em outras mídias também, o teatro inspirou o gênero Class S durante o começo do século 20 e mais tarde, inspirou também Osamu Tezuka. O “pai dos mangás” nasceu na cidade de Takarazuka, onde o teatro da trupe foi aberto e ele assistiu muitas de suas peças. Uma de suas influências mais óbvias se revela em Princess Knight, quando ele aborda uma personagem feminina posando como um príncipe. Sua obra se tornando um pilar para a demografia Shoujo. Porém, as raízes de Takarazuka em Tezuka vão mais longe ainda, os olhos grandes e brilhantes desenhados por Tezuka que se tornaram a base e inspiração de quase toda estética de anime e mangá que temos hoje foram inspirados pelas maquiagem das atrizes do teatro.

 

 

Encontrando a sua própria inspiração em Takarazuka e Tezuka, muitos dos personagens de outros trabalho de Ikeda são andróginos por lidarem com questões de gêneros como Oscar, em Rosa de Versalhes. Já em Oniisama e, este visual corrobora muito mais para a idealização destas personagens como mulheres com um charme masculino e mulheres atraentes para outras mulheres. Existe uma certa romantização deste charme e parte dele é fervor adolescente, porém, ele é levado a sério e retratado de forma sóbria quanto mais a obra se aprofunda nas relações entre seus personagens.

Embora Kaoru também possua a estética Takarazuka, é em Rei que as influências convergem mais, sendo ela o catalisador não só dos principais temas da história, mas também do yuri pelo qual a obra é popularmente conhecida. Saint-Just é a personagem mais complexa do mangá original – no anime temos uma outra personagem que é explorada ainda mais -, ela possui uma clara afetividade por Fukiko Ichinomiya e a princípio, está é a única coisa que parece a afetar. Existe um passado entre as duas personagens que se torna um mistério, Rei é obcecada com Fukiko e sua musa parece responder a seus apelos com atrito. Eventualmente, descobrimos que apesar do amor que Rei carrega consigo, ela também sente ódio de Fukiko e que esta também tem alguma obsessão com Rei, pois há um sentimento de possessão que envolve a necessidade de isolá-la. É implícito que em virtude de sua obsessão, Rei passou a consumir drogas e se tornou viciada, e ainda por cima, possui fortes tendências suicidas. E para colocar a cereja no bolo, nossa protagonista Nanako se apaixona perdidamente por Saint-Just quanto mais se aproxima dela.

É importante ressaltar que nesta época foram criados os primeiros mangás yuri por autoras do Grupo do Ano 24, em especial Ryoko Yamagishi e a própria Riyoko Ikeda.  Estes primeiros trabalhos se inspiravam fortemente em livros do gênero Class S, obras literárias que surgiram no começo do século 20 e se tornaram populares junto com Takarazuka.

Próximo daquela época, as reformas educacionais iniciadas pelo recém formado Ministério da Educação Japonês (1871), em especial as iniciativas de Mori Arinori e Inoue Kowashi, se esforçavam para fornecer e propagar educação pelo país de forma a centralizar o poder e a lealdade do povo no Imperador Meiji e promover a modernização do país. Estas medidas são a base do sistema moderno educacional japonês e estabeleceram o ensino compulsório para todos e também o acesso a educação por parte das garotas. Inoue Kowashi, em particular, promoveu a criação de escolas vocacionais voltadas somente para garotas e desde então, o número de escolas do tipo cresceu bastante rápido no Japão. Na época em que o Class S se tornou proeminente já haviam mais de 200 escolas do tipo por todo o país. E esta é a raiz do gênero, a influência literária ocidental moldou um ambiente próprio para o sentimentalismo se propagar por essas escolas. Era comum haver relacionamentos amorosos entre garotas, porém isto era visto como uma fase da adolescência e não era julgado como lesbianismo quando não persistia além da época do convívio escolar.

O Class S surge então como um gênero literário que busca retratar o romance destes relacionamentos juvenis entre mulheres, especialmente aqueles entre senpai e kouhai. O “S” do título retrata isso através do seu significado, podendo ser uma abreviação de “Sister”, “Shoujo”, “Sex”, dentre outras. Estes trabalhos possuíam muitas características advindas do romantismo e trabalhavam em cima de idealização, platonismo, amor transcendental e tragédia. E apesar da liberdade dada as garotas no período escolar, a sociedade japonesa em si não era receptiva a comportamentos homossexuais, isto é evidenciado pelo pessimismo com o qual as autoras – algumas das quais eram lésbicas – desenvolviam as conclusões de suas histórias, onde geralmente havia a separação trágica do casal principal através de meios como a morte ou o matrimônio com um homem.

O modelo narrativo de Class S é empregado em Oniisama e através do personagem da Rei. O curioso é que apesar disso, Riyoko Ikeda não trabalha seus temas de forma a pregar o certo ou errado para o leitor e nem para impor um valor social, ela reconhece em sua obra que o amor transcende o gênero, então ela consegue escapar um pouco do conservadorismo que impregnava os trabalhos contemporâneos de sua época. Este mesmo cuidado ela emprega nos outros temas que toca, de doença a suicídio. Mesmo em meio a romantização de seus personagens, Ikeda consegue utilizar o drama para caracterizá-los de forma realista. Não há dúvidas que pela maneira como a autora abordou assuntos tão controversos e tão difíceis que ela estava muito a frente de seu tempo. E não à toa, demorou 16 anos para que Oniisama e fosse adaptado para TV e ainda assim, ele foi algo único para a mídia neste período.

 

A releitura de um mestre

 

Em 1991 foi exibido na TV a adaptação de Oniisama e feita pela Tezuka Productions e com a direção de Osamu Dezaki. O diretor já havia trabalhado com Ikeda anteriormente, no clássico Versailles no Bara, e em Oniisama e ele entrega desde o começo todas as técnicas que desenvolveu durante anos em diversos animes, em especial das duas adaptações de mangás shoujo que fez. Como resultado, o mangá original de três volumes foi transformado em 39 episódios de anime. É claro, o trabalho não é único de Dezaki,  a composição da série foi planejada por Hideo Takayashiki (responsável também por Ashita no Joe 2, Gyakkyou Burai Kaiji, Rainbow: Nisha Rokubou no Shichinin) e os roteiros foram escrito por ele e sua ex-esposa Tomoko Konparu (responsável também por Nana, Touch, Ao Haru Ride, Kimi ni Todoke, Nodame Cantabile, Lés Miserables, School Rumble, dentre outros), sendo os dois essenciais para compor o cenário da visão artística de Dezaki e complementar e aprimorar o material original de Riyoko Ikeda. No entanto, é sabido que as instruções de Dezaki foram importantes para a construção dos personagens, conforme a própria autora o disse, ele parecia conhecer mulheres melhor que a maioria das mulheres.

Osamu Dezaki começou sua carreira no ramo de animação cedo, seu primeiro trabalho foi com Astro Boy em 1963, então ele trabalhou e desenvolveu animação em um período onde não havia meios de ensino viáveis. Uma de suas inspirações foi o próprio Osamu Tezuka e a maneira como ele pensava em incorporar as técnicas de cinema em animação. O cinema se torna uma influência clara no trabalho de Dezaki quando se analisa o que ele fez, incorporando na direção dos animes uma perspectiva de câmera e utilizando também ângulos de visão holandeses semelhante as novas tendências cinematográficas da época, além de procurar criar cenários com múltiplas camadas para dar profundidade ao ambiente no qual os personagens se situam. Técnicas que hoje são lugar comum na animação foram implementadas e aprimoradas por Dezaki desde sempre. E se por um lado, Dezaki estava levando a mídia para frente criando novas possibilidades e desafios – o que poderia significar também um maior custo -, ele também se preocupava com a limitação de seus recursos. Desenvolveu técnicas para acrescentar à dramaticidade de uma cena sem necessariamente ter que fazer uso de animação completa, para isso utilizava imagens de efeito em cenários que focavam os aspectos que gostaria de chamar atenção nos personagens e a sua marca registrada, as memórias de cartões postais. Estes cartões postais consistiam na paralisação de um frame após uma sequência de animação dramática, este frame geralmente se distinguia da animação comum por ser mais detalhado e por utilizar uma paleta de cores mais próxima da pintura. Os cartões serviam como memórias a serem guardadas em um álbum antigo e a técnica foi muito copiada nos anos 80 e 90, e embora não tanto quanto antes, ela é utilizada até mesmo hoje em dia.

 

 

Como mencionado anteriormente, Dezaki trabalhou em dois animes voltados para público shoujo antes, Ace wo Nerae!, um shoujo de esporte onde desenvolveu melhor a sua capacidade de reduzir custos e dramatizar cenas que precisam de impacto, e Versailles no Bara, um verdadeiro clássico que utiliza tudo que sabia como animador e diretor. Portanto, seria fácil pensar ou assumir que por causa disso, Oniisama e não se destaca dos dois, especialmente do último. Só que existem algumas coisas para se levar em consideração. Ao contrário de Versailles no Bara, Osamu Dezaki trabalhou em Oniisama e desde o começo, ele não entrou no meio do projeto para substituir outro diretor. Então Oniisama e é um trabalho no qual Dezaki pode trabalhar sua visão artística desde o seu princípio e suas técnicas acrescentam muito à atmosfera de Oniisama e.  Além do fato de que a narrativa de Oniisama e lida com problemas mais contemporâneos e relacionáveis para sua época em contraste com Versailles no Bara e até mesmo Ace wo Nerae!, embora este seja relativamente moderno. No fim, Oniisama e ainda é muito um produto de seu tempo, mas ele discute temas que são muito mais relevantes e importantes para a sociedade atual.

A fundação de Riyoko Ikeda era muito sólida nos temas que ela abordou em 1975, mas não era nem de longe perfeita.  O mangá tem um ritmo demasiadamente acelerado e nem sempre os seus conflitos entram em harmonia uns com os outros ou são trabalhados com a profundidade que poderiam. A adaptação de Oniisama e não só corrige esses problemas, como também não se preocupa em ser uma cópia fiel do trabalho original, acrescentando a visão artística da equipe que trabalhou no anime e levando-o para um lugar completamente diferente. Muito do que está ali é o mesmo, mas expandido, aprofundado e reinterpretado, de tal forma que as duas obras tem resoluções e tons completamente distintos. Osamu Dezaki soube captar muito bem não só a atmosfera feminina e surreal dos mangás shoujo, como também o realismo com o qual Ikeda complementava o melodrama de sua narrativa. O resultado final é excelente, pois o anime dá o devido valor para quase todas as questões que  o mangá original havia criado e aprimora a caracterização de todos os personagens.

A única ressalva com o anime é que embora Oniisama e seja claramente um yuri, algumas decisões da equipe parecem relativizar isto um pouco como uma fase da adolescência, enquanto no trabalho original isto não é relevante. Bem, talvez seja injusto da minha parte julgar como tal, tendo em vista que Isso é meramente implícito. Em especial porque o anime não deixa de trabalhar a atração sexual e a relação lésbica entre as personagens. Apenas é um pouco decepcionante que, sem nenhum sinal ou motivo para tal, um dos momentos finais revela uma personagem como bissexual e que exista uma ênfase na maneira como esta personagem expressa adoração pelo que vê como “relacionamentos profundos” entre homem e mulher em contraste com seu amor ingênuo e inexperiente por uma mulher – apesar de que, para ser justo, ela também expressa muita romantização pelo amor que tem. Esse tipo de abordagem também é bem característica dos já mencionados livros do gênero Class S, é algo que está intrinsecamente ligado aos valores e medos daquela época e o mero fato de que a questão foi abordada com seriedade é um testemunho para a coragem daqueles que trabalharam nela. Então seja lá o motivo pelo qual você decidir ver ou ler Oniisama e, acredito que há algo aqui que vale muito a pena e que há muito para ser encontrado nas pequenas histórias que nós consumimos.

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