Um texto inacabado sobre Shoujo ☆ Kageki Revue Starlight

Revue Starlight é de uma ambição curiosamente peculiar. Criado como uma franquia multimídia pelas companhais Bushiroad e Nelke Planning, foi anunciado em abril de 2017 que seria composto de um musical e um anime e que teria o mesmo cast para os dois projetos. As apresentações do musical iniciaram em setembro de 2017 e o anime foi posteriormente lançado em julho de 2018 como uma produção do estúdio Kinema Citrus. Atualmente, a franquia que, inicialmente, seria de mídia dupla já conta também com uma prequel do anime em formato mangá e foi anunciado o lançamento de um mobile game. Por um lado, é inegável que Revue Starlight é um projeto extremamente comercial… Por outro, é inegável o quanto ele também é disruptivo. Em um contexto moderno, Shoujo Kageki Revue Starlight se torna mais do que apenas um competidor para a lista de melhores animes do ano, é uma obra com um trabalho único de expressividade, cuja profundidade retrata as mazelas sociais de séculos de história das mulheres japonesas.

É adequado o musical tenha sido a origem da franquia. A Nelke Planning  é uma companhia fundada em 1994, cuja linha de negócios são apresentações teatrais, seja através de companhias de estrada ou de teatros de verão. Muitas de suas peças são baseadas em animes, porém, como a mãe de um projeto, a Nelke Planning teve a oportunidade de expor um outro lado de si mesma e encontrou a capacidade de fazer isto através da direção de Kodama Akiko, ex-diretora e dramaturga da Takarazuka Revue. Por isto, acho que não é desassociável parte de seus princípios e valores de uma das raízes fundamentais de Revue Starlight, a crítica ao teatro Takarazuka e o que ele pode representar. Este aspecto esteve imbuído na peça musical desde o seu princípio, mesmo que de uma forma mais leve e simplista do que no anime. Foi um brilhante impulso criativo que se tornou o fio condutor de toda a franquia, simbolizado, especialmente, por Kanata Nakamura.

Nakamura é uma liricista e trabalhou como tal na composição de todas as insert songs do projeto Revue Starlight e cujas mãos tocaram  todas as mídias na qual a série se propagou até agora, tornando-a a principal idealizadora de tudo que a série é. Inicialmente, ela participou da produção do musical original como roteirista (dramatic script) junto de Kaori Miura (screenplay) que ajudou a transpor suas ideias para o trabalho das atrizes. As nuances de personalidade e as mensagens que cada personagem carrega foram concebidas pelas duas em conjunto de Kodama Akiko. Depois, Nakamura foi a roteirista que escreveu a prequel Shoujo Kageki Revue Starlight Overture. E se a peça musical e o mangá não existiriam sem Nakamura, o anime também não. As insert songs em Revue Starlight tem um papel fundamental na progressão narrativa e no desenvolvimento de suas personagens, sendo utilizadas em praticamente todos os momentos dramáticos e catárticos da animação. Foram 11 músicas compostas, exibidas em 10 episódios do total de 12. E por consequência, Nakamura teve input criativo em toda a produção de Shoujo Kageki Revue Starlight. O diretor Tomohiro Furukawa, o assistente de diretor, Takushi Koide e o diretor de som Haru Yamada, por exemplo, tiveram que conversar com ela sobre como trabalhar a animação em conjunto com a música e de forma coerente com o significado de suas letras. O compositor de séries, Tatsuto Higuchi teve que conversar com ela sobre o roteiro do musical original para transpor seus temas para o anime e para desenvolver os arcos das personagens. Tanto ela, quanto a Nelke Planning, atuaram junto com uma equipe de músicos para auxiliar os talentosos Yoshiaki Fujisawa e Tatsuya Katou a compor a trilha sonora do anime. Além de que foi ela quem supervisionou as gravações da dublagem de Revue Starlight, coordenando e guiando as atrizes de acordo com as necessidades de seu papel.

Basicamente, Revue Starlight tem muito de Kanata Nakamura. E Kanata Nakamura tem muito de Revue Starlight. Se torna um agrado ver que é uma mulher que encabeça a produção desta franquia e que mulheres estão muito presentes no processo criativo dela. Afinal, as críticas tão pontuais ao Takarazuka muito tem haver com as imposições sociais que as mulheres sofreram no Japão ao longo dos anos e Revue Starlight traz consigo uma mensagem de liberdade e sororidade. No entanto, para chegarmos a esta conclusão, precisamos primeiro entender qual é o contexto por trás destas imposições.

Mulheres e teatro

 

Mesmo nas origens modestas do teatro japonês, o papel feminino era pequeno. Havia algumas trupes e apresentações de mulheres no estado primitivo da arte japonesa e até mesmo no início do Sarugaku -descrição coletiva de Noh e Kyogen, vigente até o início da Era Meiji –, embora nunca com um apelo popular muito grande.  Com o fortalecimento do Noh e do Kyogen, duas das formas mais tradicionais de teatro japonês e as mais antigas ainda praticadas atualmente, qualquer envolvimento das mesmas às artes foi relegado. Isto decorreu principalmente por causa das tradições hierárquicas do sistema Iemoto de artes e da adoção do Noh e do Kyogen como formas de teatro representativas de ideais e valores do Xogunato Tokugawa durante o período Edo. Havia uma necessidade de podar liberdades em favor de preservar o que acreditavam ser moralmente aceito.

Noh e Kyogen sempre foram muito relacionados um ao outro. O Kyogen era um estilo de peça cômico que era utilizando em intervalos dos atos de Noh. Eram de curta-duração e possuíam uma certa variedade de personagens femininas, retratando os esterótipos do cotidiano através do humor. Já as peças Noh eram mais dramáticas e longas. Um dos motivos pelo qual são conhecidas é por causa das máscaras, que primariamente, o Shite, ator principal, utiliza. Geralmente as histórias se focavam em folclore e seus símbolos, sua estética ajudava a sugerir um ambiente para retratar rituais.  No contexto de Noh, a mulher era vista através de uma ótica masculina, e portanto, havia duas representações principais dela, ambas envolvendo primariamente um romance com um homem: A da mulher quieta, resignada, delicada e afetuosa; A da mulher louca e quebrada.

E em diversos sentidos, o Kabuki que surgiu no início do século XVI era o oposto da tradição do Noh, embora ele, hoje em dia, seja considerado a principal forma do teatro tradicional japonês. Tal qual Noh, ele era uma peça dramática, mas seu diferencial era seu estilo e seu foco em dança. Kabuki é o bizarro, é o fora do comum e suas peças eram extravagantes. Foi originado por uma possível Miko do Grande Templo de Izumo, Izumi no Okuni. Ela teria sido mandada por seu pai para Kyoto, para através de suas danças e ritos sagrados xintoístas, angariar contribuições para o templo. O que Izumi fez de bom grado, o que ela não fez foi retornar para sua terra natal quando seu pai a pediu. Ela continuou a mandar contribuições para ele, mas seu coração havia encontrado valor e liberdade através de suas apresentações.

Conforme o povo gostava de suas danças religiosas, ela foi aprendendo a se soltar e a criar um estilo próprio. Eventualmente Izumi juntou outras mulheres e formou uma trupe. Ela fez questão de juntar aquelas que marginalizadas, algumas das quais se envolviam com prostituição, para ensiná-las a dançar e a atuar. Isto ocorreu em 1603 e o estilo de Izumi fez muito sucesso. Suas peças eram voltadas para o cotidiano e atraiam muitas pessoas, de todos os tipos de classe para prestigiar o espetáculo. Em contraste, o Sarugaku era de apelo elitista, de consumo das famílias nobres e dos samurais. Ainda por cima, em um ato visto como o símbolo de um coração selvagem e sem controle, tanto homens quanto mulheres eram interpretados por mulheres na trupe de Izumi, afastando o estilo ainda mais das tradições do Xogunato Tokugawa.

O estilo ganhou popularidade no Japão e a trupe de Izumi foi imitada por diversas outras. Surgiram algumas trupes masculinas, inclusive, mas o mais notório foi o sucesso das peças nos bordeis e como uma ferramenta de marketing para prostituição. Isto deu origem ao Onna-kabuki, cujas peças eram muito mais voltadas ao provocante devido a sua natureza ousada. Esta cultura dominou o distrito vermelho de Kyoto durante o período em que o Kabuki feminino era permitido.

É importante frisar, que pelo que os registros históricos atestam, é unânime que Izumi no Okuni foi a fundadora de Kabuki. Porém, muitos dos documentos históricos do período não são completamente confiáveis e alguns deles misturam a figura da Izumi com personagens de peças de Kabuki. Por isto é difícil traçar exatamente qual foi a evolução do estilo na época. Alguns documentos atribuem ao amante de Izumi, Nagoya Sanza um importante papel no desenvolvimento dramático da arte de Kabuki, que inicialmente teria sido voltada muito para skits cômicos. Alguns atribuem a Izumi o desenvolvimento de uma maturidade após a morte de Nagoya que a incentivou a produzir peças ainda mais ricas em seu conteúdo. Religião, cotidiano, discrepâncias sociais, vulgaridades, sexualidade, muito foi abordado em Kabuki… E chegou um dia em que os ruídos sociais incomodaram o Xogunato e em 1929, eles declararam proibido a participação de mulheres em qualquer tipo de peça. Tirando de diversas mulheres, o único meio que elas tinham de expressar a sua identidade, de viver um pouco fora da própria realidade, num tempo em que elas não eram donas de si.

O Kabuki continuou a existir. Desta vez com os onnagata, homens que atuavam como mulheres, no comando dos espetáculos. Inicialmente era mais proeminente o Wakushi-Kabuki, feito por homens jovens. Eventualmente, este também foi banido por causa de suas ligações com prostituição e a ele sucedeu o Yaro-Kabuki. Desta vez os personagens eram representados por homens mais velhos e este foi o que permaneceu e formou o teatro mais tradicional japonês. Os onnagata do Yaro-Kabuki tinham que representar as personagens femininas de acordo com sua natureza, mas nunca de forma erótica. Visualmente, o próprio Kabuki mudou. Ainda extravagante, ele inseriu a utilização de perucas para as performances e o uso de maquiagem para distinguir e destacar os personagens femininos e masculinos.

Foi no final do século XIX que a lei envolvendo a proibição de mulheres no teatro foi alterada. Com o passar do tempo, no século 20, algumas formas de teatro tradicional passaram a aceitar mais a participação de mulheres. O Noh e o Kyogen, por exemplo, tiveram uma considerável quantia de intérpretes femininas, embora seu atores ainda fossem majoritariamente homens. O Kabuki, com centenas de anos de desenvolvimento e de retrato da modernidade urbana do Japão desde sua concepção, se tornou a face da dramaturgia do país após o fim do período Meiji. E ironicamente, justo o estilo que foi originado por uma mulher, é aquele que se recusa a incluir o seu berço na sua história atual. A interpretação dos mestres, é de que a arte dos onnagata compõe o Kabuki e que o desenvolvimento da interpretação feminina através de homens deve ser preservado, pois é algo único, tendo em vista que é uma decisão consciente. (O que só te faz pensar, beleza, então por que não deixar as mulheres desempenharem os papéis masculinos e desenvolver ainda mais esta arte do travestir?)

 

Os alicerces de Takarazuka

 

Após as reformas educacionais do final do século XIX e do começo do século XX, houve espaço para o crescimento da expressividade feminina. Este trazia consigo, não só um refúgio para as mulheres japonesas das expectativas sociais (em seu papel como mãe e dona de casa subserviente), mas também a possibilidade de subversão das mesmas. O que no fim, não fazia uma grande diferença, pois estes meios de expressividade eram guiados por uma visão masculina.

Ichizo Kobayashi, presidente da Hankyu Railway, criou o Takarazuka Revue em 1913. Na época, ele queria atrair um público mais abrangente para a cidade de Takarazuka. A cidade em si, já era um lugar de visitação turística conhecido, por causa de suas termas naturais, mas Kobayashi queria fomentar ainda mais os negócios locais. Para isto, teve a ideia de trabalhar com o entretenimento, e buscando se distanciar do elitismo presente em estilos como Noh e Kabuki, criou uma trupe completamente feminina para haver uma recepção pública maior de diferentes classes sociais.

O estilo era mais moderno, musicais de narrativa peculiarmente melodramática, o excesso visual dos sets e dos designs e as coreografias de dança conquistaram um novo público. O teatro se tornou um sucesso absurdo, especialmente entre as mulheres. Em poucas décadas, se tornou um ícone para o país inteiro. As propostas de escapismo e liberalismo social, no entanto, ficaram obscurecidas sob o sistema criado para o Takarazuka Revue.

Para fazer parte de umas das trupes de Takarazuka, garotas tem que se candidatar durante o seu período de ensino médio, dos 15 aos 18 anos, tem de passar em exames práticos e teóricos para finalmente, serem aceitas na academia. São aceitos por volta de 40 ou 50 estudantes todos os anos, e elas são treinadas por dois anos em diversos estilos de atuação e dança, tanto ocidentais quanto orientais. Além, é claro, de serem disciplinadas para serem “boas esposas e boas mães” assim que deixarem a companhia. A visão de Kobayashi reforça o status quo da sociedade japonesa, embora seja disfarçada através de políticas progressistas. Um aspecto disto, é a quebra de normas de gêneros ao permitir que as mulheres se travestirem para as performances (sua peça mais famosa, Rosa de Versalhes, adaptação do manga de Riyoko Ikeda, sendo um bom exemplo disto, tratando a questão de forma até mais direta). As mulheres que atuam em um papel masculino, são conhecidas como Otokoyaku, enquanto as mulheres que atuam em papeis femininos são conhecidas como Musumeyaku. Através dos Otokoyaku, as mulheres podem atuar no papel de um “homem idealizado”, algo que não pode ser encontrado na realidade, um homem de coração nobre que não atue de forma impositiva. E enquanto sonhos eram vendidos com esta proposta sob a superfície, a realidade era de que as mulheres em papel de Musumeyaku atuariam majoritariamente como suporte. O marketing do teatro Takarazuka se define através da figura da Top Star, da atriz que vai guiar a sua trupe por anos com seus talentos e atuação… E a Top Star só pode ser Otokoyaku. A Musumeyaku até pode ter uma atriz que represente o seu ápice, mas ela sempre virá em segundo, não importa as circunstâncias. A mulher, em Takarazuka, só é realmente valorizada, em seu papel representativo de um homem.

As condições as quais permeiam Takarazuka foram denominadas de “Código Violeta”. É um conjunto de regras não escrito que define como Takarazuka deve ser feito e consumido. As fundações do teatro protegem estes velhos paradigmas e criam um ambiente hostil e competitivo entre as mulheres, especialmente as novatas na academia. Ao final de seu primeiro ao na escola de música de Takarazuka, as garotas tem que decidir no que irão se especializar, separando-se nas que irão se dedicar a ser Otokoyaku e nas que irão se dedicar a ser Musumeyaku, uma decisão irreversível que irá ditar para sempre o rumo de sua carreira. Ao final dos dois anos na escola, já terão sido decididas aquelas que tem aptidão para os trilhos do estrelato. É um ambiente tóxico que marca estas garotas e mulheres.

Ainda assim, o teatro Takarazuka é um símbolo do sonhos femininos e inspirou muita gente com suas fantásticas peças musicais. Há quem tenha sido cativado pelas belas atrizes de forma sexual. Diversas fãs viam brotar sentimentos pelas atrizes que atuavam no palco, especialmente pelas suas representações masculinas, numa época onde não havia um forte discurso de identidade sexual no Japão. As atrizes recebiam diversas cartas de fãs, com conteúdo sugestivo e com declarações de amor. O sistema tentava suprimir isto, mas há casos documentados sobre isto, uma pesquisa extensa de Jennifer Robertson, que teve acesso aos arquivos do teatro Takarazuka evidenciam o apelo sexual das peças para o seu público. O que basicamente significa que muitas mulheres descobriram-se lésbicas através da cultura popular do começo do século XX, muito devido ao teatro, ao próprio gênero literário Class S e também, ao sistema educacional japonês. Esta busca por auto-conhecimento e liberdade, obviamente, nunca foi fácil. A controversa natureza progressista do Japão e seus conflitos com os valores sociais patriarcais em seus mais diversos sistemas trouxe miséria para muitas mulheres. E a marca do problema foi fixada da pior forma possível: Uma série de suicídios e tentativas de suicídios de lésbicas e de casais lésbicos por todo o país.

“Historicamente, no Japão, suicídio ou tentativa de suicídio são reconhecidos até certo ponto como um ato de empoderamento que ilumina a pureza e sinceridade das intenções e da posição do indivíduo… Em outras palavras, no Japão, suicídio é um ato culturalmente inteligível. As Garotas Modernas que tentaram se suicidar entendiam que era um ato que tornava uma condição privada em um assunto público.” (Robertson, Jennifer – p. 196, Takarazuka: Sexual Politics and Popular Culture in Modern Japan)

E a resposta de Ichizo Kobayashi, do fundador do teatro Takarazuka e portador de seus ideais foi negar toda e qualquer relação do teatro Takarazuka com homossexualidade. Trazendo à tona a natureza patriarcal do teatro como forma de fazer com que ele sempre seja socialmente aceito. Kobayashi tentou calar as vozes de suas atrizes e suas fãs, de fingir que nada do teatro fazia parte daquele contexto social. As cartas de fãs passaram a ser lidas e triadas por outros funcionários que não as atrizes e o sistema que já prezava pela pureza de suas atrizes, passou a ser ainda mais rígido. A cultura de pureza de idols, que não podem ter relacionamentos durante sua carreira ou expor suas vidas públicas de forma que quebre esta imagem é algo decorrente do que surgiu no teatro Takarazuka.

Só que no fim das contas, qualquer fachada é fútil diante do que é natural, por mais que Ichizo Kobayashi tenha tentado se afastar destas questões, suas políticas nunca mudaram a relação do público com o entretenimento e nem mesmo o que seus funcionários prezam. Diversas atrizes procuraram carreiras fora de Takarazuka por não se identificarem com seu sistema. E embora exista uma necessidade de propaganda da “pureza” de Takarazuka e de um suposto apelo não-sexual, é inegável que o seu público, ainda majoritariamente feminino, encontra no teatro uma identificação sexual. Algumas atrizes do meio já revelaram fazer parte de relacionamentos homossexuais, há relatos de ex-funcionários de que tais relacionamentos ocorrem até mesmo dentro da própria academia. O mundo seguiu adiante e o Japão encontra-se em um período onde o progressismo caminha a passos lentos, porém, mais aceito. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito do teatro Takarazuka, que ainda impõe sobre as mulheres, tanto as que fazem parte de sua escola de música e que trabalham nele, quanto as de seu público, seus valores ultrapassados.

 

Shoujo ☆ Kageki Revue Starlight

 

Como uma história original, Revue Starlight é um trabalho conjunto entre Bushiroad, Nelke Planning e Kinema Citrus. Porém, é importante mencionar por que Tomohiro Furukawa foi escolhido para dirigir a série. Furukawa é um dos protegidos e pessoas de confiança de Kunihiko Ikuhara, tendo trabalhado com ele antes em Yuri Kuma Arashi, onde chegou até mesmo a ser co-diretor, e em Mawaru Penguidrum. Ikuhara é famoso pelo seu trabalho como diretor em diversas séries, Sailor Moon, Mawaru Penguindrum, mas sobretudo, por Revolutionary Girl Utena. Utena tem muitas semelhanças com Shoujo Kageki Revue Starlight, trabalhando uma imposição social sobre a mulher e temas de identidade e sexualidade que no fim são utilizados para subverter os próprios ícones culturais e narrativos que formam a história. Visualmente, Ikuhara utiliza muitas inspirações teatrais, algumas advindo do próprio Takarazuka Revue, para construir um ambiente simbólico e surreal que retratará os conflitos pessoais dos personagens. É um esforço que sempre é característico do Ikuhara e da forma como ele gosta de desenvolver suas séries, o mesmo esforço foi presente em Yuri Kuma Arashi, mas de outra forma, e é algo que Furukawa absorveu e agora quer trabalhar por si.

Ressalto, no entanto, que apesar do primoroso trabalho de Furukawa, que ele não deve ser tratado como o único responsável pelo sucesso e qualidade de Revue Starlight. Não só pela própria equipe do estúdio Kinema Citrus que soube trazer à tona muitos talentos individuais, mas também por ser inegável a influência e o papel que as artistas da Nelke Planning tiveram no trabalho final, não só a equipe criativa, mas até mesmo as atrizes foram importantes para moldar as personagens e tiveram liberdade para tal – conforme visto neste vídeo onde, Aiba-san fala sobre ter criado a música que Claudine canta no primeiro episódio ao se apresentar –. Não podemos deixar de falar ainda, dos problemas de produção que a Kinema Citrus teve. A equipe não havia finalizado o anime quando ele começou a ser exibido e eles precisaram anunciar vagas para animadores no twitter para conseguir completar os cuts dos episódios. Por isto, muitos animadores de todos os lugares do mundo participaram do projeto. É algo realmente especial como tantas pessoas juntaram seus esforços para finalizar este projeto. Algo que ressoa com a mensagem final que Revue Starlight quer passar.

Para decifrarmos a mensagem final, precisamos separar Revue Starlight em três partes que devem ser consideradas ao analisar o todo. A primeira é a premissa do anime, de maneira geral, e o que ela se propõe. A segunda é o significado da peça Starlight dentro da narrativa. O terceiro é a meta-narrativa exposta através do papel da audiência, da Girafa.

A escola de música Seisho é centenária. Ela molda através de suas alunas, as gerações que irão ocupar os palcos dos teatros japoneses. É uma escola feminina bem rígida e com um programa educacional extenso para as artes, seja para atuação ou para composição criativa. Logo, será realizado o centésimo festival Seisho, onde as alunas da 99º classe poderão testar os seus esforços exibindo uma peça para o corpo educacional, pais e convidados. É a segunda vez que a classe irá se apresentar, e conforme programado, elas continuarão trabalhando na peça Starlight ao longo dos três anos que permanecerão ali. Embora a classe tenha já tenha um ritmo próprio, ânimos da competição são instaurados na equipe de atuação mediante a chegada das audições e o início da produção da peça. Karen Aijou seguiria o mesmo rumo de sempre, animada pela prospectiva de trabalhar em equipe e orgulhosa pela conquista das amigas, mas a chegada de sua amiga de infância, Hikari Kagura a lembra de uma promessa de compartilhar o mesmo sonho. O destino cruel fica evidente, só uma pode ser a estrela, mas Karen não irá desistir de transformar o seu sonho em realidade.

O cenário escolhido, a escola de música Seisho, obviamente reflete a academia Takarazuka e a formação de atrizes para o teatro. As personagens de classe de atuação representam diferentes facetas de pessoas que são inspiradas e prejudicadas pelo sistema, algo que analisaremos caso a caso. Importante ressaltar que para a criação destas personagens, fez-se valer as experiências e impressões de pessoas que lidaram com isto diretamente e indiretamente, fazendo um retrato da possível realidade acadêmica de Takarazuka. A premissa já nos revela também o conflito por trás da série, a protagonista Karen, quer transformar o sistema, quer dar asas ao seu sonho de que no palco, todas possam ser estrelas equivalentes.

Algo interessante de se notar, além disto, é que não existem personagens masculinos no contexto teatral da peça Starlight. É uma peça que intencionalmente retrata apenas mulheres por sua mensagem central dizer respeito somente a elas. E é também uma forma realizar uma subversão do Takarazuka. É evidenciado no papel de Top Star as influências de um Otokoyaku, mas no fim das contas, a Top Star só pode ser uma mulher, como ela o é naturalmente.

A peça Starlight é um Mise en Abyme, a história dentro da história. A peça foi feita como uma alegoria para demonstrar as consequências que o sistema educacional da escola Seisho tem sobre as garotas que tanto confiam nele. Para tanto, a peça é uma tragédia e seus eventos são um reflexo da história em primeiro plano.

“Starlight é a história das deusas que são encantadas pelos brilhos dos céus. Podemos lutar e discutir e discordar, mas há laços que nos unem…”

“Ainda assim, nós podemos ser separadas, para nunca mais nos encontrarmos… É uma história triste.”

“O conto daquelas oito mulheres nos cativam.”

“A canção daquelas oito mulheres nos atrai e nos compele.”

“Vamos. Para aquele estágio. Para aquela estrela brilhante, juntas.”

Desde as primeiras falas do anime, Starlight é posicionada como um reflexo da narrativa. Karen introduz a série, narrando como se a sua história e a da peça fossem uma só.

A história de Starlight fala sobre o conto de Claire e Flora. Duas moças que se encontraram e se apaixonaram na véspera do Festival da Estrela, uma cerimônia em homenagem à Torre dos Coletores de Brilho Estelar, em uma pequena cidade, em um pequeno país. A torre está posicionada sobre a cidade, sempre refletindo sua luz sobre ela. Ninguém sabe por quem foi feito ou para que foi feito, mas ela é cultuada por sua estrela e sua luz. É dito que os afortunados que a subirem tem três possibilidades. Caso eles peguem uma estrela pequena, terão uma pequena porção de felicidade. Caso peguem uma estrela grande, receberão uma recompensa de igual valor, uma grande fortuna. Caso peguem as duas estrelas, um desejo eterno será concedido. Os contos da Torre e as festividades agradavam as duas damas, mas elas tiveram que se separa. Combinaram, porém, de se encontrar novamente na véspera do festival da estrela do ano seguinte, no mesmo lugar.

Um ano depois, na véspera do Festival da Estrela , no ano em que Flora e Claire fizeram dezesseis anos, elas se reencontraram. Foi um momento amargo. Claire sofreu um acidente enquanto voltava para casa durante o ano que se passou, acabou por sobreviver, mas perdeu suas memórias. Flora é magoada profundamente pela notícia, sua tristeza chegando a tocar Claire. A jovem perdida acredita no coração e no calor de Flora, sentindo que sua promessa é verdadeira e ansiando por recuperar sua memória. Flora lhe explica então que talvez tenha um jeito de recuperar sua memória, se na noite do Festival da Estrela elas ascenderem a Torre dos Coletores de Brilho Estelar e pegarem a estrela em seu topo, talvez assim poderão as memórias de Claire retornar.

Coletar o brilho das estrelas traz perdão. Coletar o brilho das estrelas traz o milagre da noite. Era o que uma canção antiga dizia e o que acreditaram Claire e Flora. No entanto, quando chegaram na Torre, se depararam com uma resistência. Seis deusas estiveram adormecidas durante 500 anos, aprisionadas à Torre e fadadas a protegê-la, sem lembrança do crime que cometeram para terem sido condenadas, apenas a aguardar a morte. Raiva. Evasão. Arrogância. Torpor. Ciúmes. Desespero. As seis deusas queriam impedir que as garotas escalassem a Torre. A resistência foi em vão, a despeito dos sentimentos negativos emanados pelas deusas, Claire e Flora escalaram a Torre. A deusa do desespero deixou ecoar o último lamento “o ciclo da aflição irá se repetir abaixo da luz daquelas estrelas”.

Flora e Claire estenderam a mão juntas, atraídas pela maior estrela. As deusas clamam “E será concedido a você, a estrela pelo qual você tem desejado”. A estrela maior brilhou e queimou os olhos de Flora, que em sua dor caiu da Torre e se perdeu para sempre. Claire, lamentando a perda de Flora, finalmente tem seu desejo concedido e sua memória de volta, a um custo grave demais para ter valido a pena.

As alegorias feitas ao Takarazuka e ao cenário teatral mostram a amplitude dos sentimentos negativos gerados pelo contexto social. A Torre e as estrelas se equiparam ao sistema, sua crueldade, mas também a sua capacidade de cativar e inspirar. É o desejo dos sonhos de muitas garotas, mas um caminho que leva para a perdição. Em determinado momento, Hikari fala sobre o fato de que Claire cometeu o pecado da estrela. Em Starlight isto é equiparável ao agir sob o desejo de querer a maior estrela para si. Esta estrela maior, é uma demonstração do posto de Top Star, e por consequência, do Otokoyaku. Enquanto a estrela menor demonstra os outros papeis, e por consequência, a Musumeyaku. Para um a grande fortuna de igual valor, para o outro, apenas uma pequena felicidade. Um ciclo que se repete e se repete e que carrega consigo raiva, evasão, arrogância, torpor, ciúmes e desespero. Algo que ao longo de Revue Starlight vemos ser demonstrado nas personagens e em seus conflitos. É uma tragédia que espera para acontecer. Enquanto o ciclo se repetir, enquanto almejarem a estrela grande, haverá dor para aqueles a quem apenas sobrar a pequena estrela e talvez para a estrela grande também, que logo se vê presa a Torre, se vê algemada pelo sistema.

A competitividade entre as garotas da classe de atuação gera um ambiente propício para que todas estas coisas ruins aconteçam. E diante do status quo instaurado pela apresentação do primeiro ano, já foram gerados atritos que estão prestes a estourar. Eis que dos desejos e sonhos das garotas, a sua disputa pelo “brilho” faz nascer as audições. Um lugar onde elas devem enfrentar umas as outras para ver quem é a mais digna de ser a Top Star, para ver quem irá conquistar o favor da Girafa e conseguir desempenhar o papel que irá guiar o futuro do teatro – a Top Star, no Takarazuka, é não só a principal foco do marketing da companhia, como também é uma posição que apenas uma pessoa domina por anos e as gerações do teatro são definidas pelas personalidades que atingiram este patamar –. Um lugar que é dito pela suas personalidades individuais e pela sua capacidade de cativar a Girafa.

“Uma garota do palco carrega sua própria individualidade. Escolher a Top Star entre elas – este é o propósito desta audição. A Top Star. Aquela que está no palco do destino. Aquela que desencadeia uma barragem de luz inesgotável que irá brilhar para sempre através do tempo. Uma eterna dama guia.”

E a girafa somos nós. A girafa é o observador, o espectador, a audiência. Aquele que está sempre posicionado entre as fileiras, no meio da turba. Nós que não dominamos o teatro diretamente, mas podemos ser o seu hospedeiro, ao menos enquanto decidirmos acompanhar as suas peças. Porém, nós é que neste simples ato encontramos nossa influência, nossa capacidade de atingir as histórias e de procurarmos o que queremos ver: algo surpreendente, algo que que seja tocante. É isto que a Girafa significa em Revue Starlight e sua presença nos revela como nós afetamos a narrativa e como a narrativa nos afeta. Afinal de contas, nós também temos o nosso papel na perpetuação do ciclo.

 

A busca

 

Fontes:
https://web-japan.org/factsheet/en/pdf/33Noh_Kyogen.pdf
https://derivejapan.weebly.com/kyogen.html
https://onthebridgeway.wordpress.com/2014/04/22/gender-crossings-women-in-noh/
http://www.academia.edu/4170226/Players_Performances_and_Existence_of_Womens_Noh_Focusing_on_the_Articles_Run_in_the_Japanese_General_Newspapers
https://owlcation.com/humanities/The-Evolution-of-Womens-Role-in-Japanese-Kabuki-Theatre
http://www.immortalgeisha.com/wiki/index.php?title=Kabuki
https://www.soas.ac.uk/research/rsa/journalofgraduateresearch/edition-8/file102713.pdf
http://intersections.anu.edu.au/issue21/curran_review.htm
http://www.academia.edu/6408688/Gender_and_homosexuality_in_Takarazuka_theatre_Twelfth_Night_and_Epiphany
https://www.dailyxtra.com/kabuki-to-takarazuka-the-queer-history-of-tokyos-theatres-68250
https://www.dailyxtra.com/kabuki-all-stars-62297
https://thetheatretimes.com/takarazuka-review-japanese-female-musical-theater-troupe/

Observação: Como dito no próprio título, isto é um texto inacabado que não é tocado desde janeiro de 2019. Ele pode ou não ser finalizado no futuro, mas eu diria ao menos que o futuro reserva coisas boas por aí. Te agradeço se você leu até aqui e se houver algo que eu possa melhorar, por favor comente.

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