Appleseed tinha potencial, mas vacilou – Review

Appleseed é um filme de sci-fi lançado em 2004. O filme é uma adaptação do mangá de mesmo nome, escrito e ilustrado por Masamune Shirow (Ghost in the Shell, Neuro Hard). Foi dirigido por Shinji Aramaki (Ultraman, Halo Legends) e o roteiro foi escrito por Haruka Handa (Vexille, Tristia of the Deep Blue Sea) e Tsutomu Kamishiro (Capeta, Ghost Hunt). O filme está disponível oficialmente no Brasil através da Netflix.

Sinopse: Uma guerreira exausta encara uma batalha com uma raça de humanos artificiais que quer conquistar sua cidade utópica — e dominar o mundo. (fonte: Netflix)

Eu gosto demais de ser o cara do contra, não escondo isso. Então adoraria chegar aqui e dizer como na verdade a franquia boa do Masamune Shirow era secretamente Appleseed e não o aclamadíssimo Ghost in the Shell. Acontece que dizer isso por causa desse filme seria mentir para mim mesmo, mas vamos por partes.

Applessed é um filme inteiramente CGI de 2004. Isso pode (e vai) afastar boa parte das pessoas, afinal por algum motivo o otaku tem quase uma patologia contra computação gráfica. Mas devo dizer que o filme sabe usar bem o recurso. Todas as cenas de luta são extremamente elaboradas e bem dirigidas, com uma fluidez que levaria muito mais tempo e recursos, se implementada em animação tradicional. Logo, é plenamente entendível por que a produção optou por não animar os design complicados na mão.

Acontece que é um CGI de 2004, e o tempo cobra seu preço. Os modelos dos personagens principais se mantém até para os padrões atuais (ao menos para séries de TV). O mesmo pode ser dito para as panorâmicas da cidade, que são bastante bonitas mesmo para hoje. Agora qualquer objeto com uma pintura metálica mais brilhante, como carros, e os figurantes, sofrem demais.

A cena que mais dá pra notar esse problema é uma perseguição de carros que se desenvolve numa luta contra uns ciborgues num beco. Naquele ponto estava tão feio que chegou a me tirar da experiência e por alguns segundos. Parecia um cenário abstrato de combate aleatório de JRPG. Não ajudava também que os próprios ciborgues eram meio cromados. Mas fora essa setpiece em especial, o filme flui tranquilamente e te faz até esquecer que ele tem mais de 15 anos.

Entrando mais no roteiro em si, ele tem problemas. Muitos problemas. Só que, incrivelmente, todos esses problemas são sintomas de uma mesma doença. Essa doença é o ritmo do filme. Appleseed é um filme de 1h45m, mas que conta uma história que facilmente precisaria do dobro disso.

Eu não li o mangá nem nada, então minha experiência (e essa review) se baseia única e exclusivamente no que me foi apresentado aqui. Mas a sensação que passa é que o roteiro não queria abrir mão de nenhum dos conceitos do mangá. A consequência disso foi que ele abriu mão de todos eles.

Esse filme quer, ao mesmo tempo, nos apresentar aquela sociedade utópica, apresentar um golpe de estado, discutir se a humanidade merece viver, discutir o que é ser humano, trabalhar a protagonista se reecontrando com o próprio passado, mostrar a protagonista lidando com um ex-namorado do passado e desenvolver como a protagonista lida com um novo esquadrão.

Todas essas coisas tem mais ou menos uma conexão e sucessão lógicas, mas é muito para um filme só. O resultado é que tudo ganha importância igual, que é quase importância nenhuma.

Dois exemplos desse problema são o reencontro entre a Deunan e o Briareos e o esquadrão novo. No primeiro, eles tiveram um passado, foram parceiros, amantes e irmãos de armas. Acabaram indo para frontes diferente e quando se reencontram nenhum dos dois é a mesma pessoa. O Briareos literalmente, já que se tornou um completo ciborgue no meio tempo. Isso por si só já seria um drama interessante para um filme inteiro, ainda mais com pitadas aqui e ali de se o Briareos ainda é confiável. Acontece que, do jeito que as coisas acontecem em Appleseed, eles conversam três vezes durante o filme todo.

O outro exemplo é o esquadrão novo da Deunan. Nós somos apresentados ao esquadrão com ela humilhando os caras num treino. Em dez minutos a Deunan, que começou apenas com uma faca, derrotou dezesseis caras armados. Essa cena serve para mostrar as capacidades da protagonista, ao mesmo tempo que apresentar como ela é metida. Depois disso o Briareos olha pra ela e diz “você deveria respeitar mais seus companheiros, sua vida pode depender deles um dia”. A próxima cena que temos relacionada a isso é uma breve no bar dela ficando isolada e já cortamos para ela dependendo do esquadrão. Na situação, dois figurantes nomeados morrem para dar cobertura para ela. E esse é o fim desse subplot, com direito a Deunan desesperada por eles estarem sendo mortos.

Em ambas as situações, o filme não deu o tempo e a atenção mínima que fosse para o espectador sentir qualquer coisa. Do jeito que as coisas acontecem no filme, parece mais uma sequência de clichês empacotados do que uma construção em si. Personagens surgem, morrem ou ficam em perigo mortal de um estalo, e você continua estático, sem sequer ter tempo de absorver as duzentas informações anteriores.

Se me permitem, agora vou entrar um pouco nos spoilers das (não tão) grandes revelações de Appleseed.

Entrando no personagem da Deunan, tenho sentimentos conflitantes com a mesma. Ela é uma protagonista forte e bastante carismática, com bastante camadas pelo que parece no filme. Acontece que o roteiro não usa muito isso pra nada. O arco dela de descobrir mais sobre si mesma diz muito pouco sobre o drama da cidade Olimpus. E o contrário também é verdade.

A gente descobre que a Deunan é filha da criadora dos bioroids. Em momentos antes a própria personagem diz que não se lembrava da mãe. A série amarra essas duas pontas colocando a garota, ainda criança, vendo a mãe ser morta por soldados. Meu problema com isso é que, fora essa fala isolada, a ausência da memória da mãe não parece ser um conflito para a Deunan.

De forma semelhante, a existência ou não dos bioroids não parece uma questão para a personagem. Assim como as dúvidas sobre o que é ser humano, ou se a humanidade sequer merece uma nova chance de ser.

Então é completamente bizarro que a série tenha um momento de discurso sobre o potencial da humanidade através dessa personagem que é completamente alheia ao conflito todo. E mesmo a cena em que vemos a filmagem da morte da dr. Gilliam, por mais bem dirigida que seja, acaba perdendo peso por falta de conexão do espectador.

E no meio disso tudo, o Briareos está fazendo um jogo de agente triplo entre as diversas facções dentro da Olympus. E tudo nos é entregue de forma completamente sem graça, seguido do primeiro de duas quase mortes do personagem. Com o tempo certo para tratar todas essas coisas, Appleseed teria sido um grande filme.

Para não dizer que não falei da temática, eu gosto bastante dos conceitos presentes em Appleseed. Basicamente essa é uma utopia em que uma nova raça humana foi desenvolvida, os bioroids. Só que esses novos seres tiveram limitações propositalmente colocadas neles. Eles tem data de validade e não podem se reproduzir, semelhantes aos replicantes de Blade Runner.

Acontece que, nessa sociedade, só humanos normais podem integrar o exército. E são esses caras, caracterizados na própria série como reacionários, que querem exterminar os bioroids. Eles querem fazê-lo pois temem perder seus privilégios, sua dominância, sua relevância. “Bioroids podem servir, agora governar e tomar decisões, aí já é demais!”

A parte que eu não gosto é que esse golpe de estado é basicamente resolvido em off. Literalmente a prefeita Athena chega no clímax da história e fala “eles me ligaram e aceitaram negociar”. É completamente bizarro como essa parte do roteiro é jogada fora para podermos ter mais um twist.

E é um twist interessante também. O conselho de velhos humanos estão buscando um pretexto para poderem fazer uma esterilização em massa da humanidade. Para isso eles precisam que os bioroids se tornem auto-suficientes. Logo, esse conselho de velhos decide fechar os olhos pros avanços autoritários do exército, para com isso poderem manobrar a opinião da IA que gerencia o Olympus pro lado que eles querem.

O Olympus é basicamente uma Arca de Noé da história e a Gaia, a IA que gerencia tudo, é o juiz imparcial que define quem merece estar na arca. Se bioroids e humanos entrarem em harmonia, a Gaia permite a coexistência, caso os humanos se tornem hostis, apenas os bioroids devem prevalecer.

A conclusão da série é a Deunan discursando como os humanos, mesmo que fadados ao pecado, ainda merecem continuar vivendo. Mesmo que prevalecer seja apenas para não passar o pecado original para os bioroids.

E todo esse raciocínio da Deunan vem justamente porque a Appleseed foi concedida a ela pela mãe. Mas como eu falei mais acima, não parece que o personagem da Deunan teve uma mudança de perspectiva descobrindo o próprio passado. Parece apenas que ela herdou as inspirações da mãe porque o roteiro precisava que isso acontecesse. E essa falha anterior faz com que o discurso dela deixe de ser inspirador, e parece apenas um clichê barato que você pode ver em qualquer filme meia boca da Marvel.

Então concluindo, Applessed tinha o potencial de ser um grande filme. Uma daquelas gemas escondidas na areia que foi negligenciada, seja por não ser animação tradicional, seja por ser o mangá menos relevante do autor de GitS. A realidade não é tão bonita, e se demonstra como um gigantesco potencial desperdiçado, com ideias interessantes e execução fraca. Ao menos as cenas de ação são realmente excelentes.

Uma última coisa pra fechar, eu acho realmente muito engraçado personagens de origens diversas terem todos nomes de deuses gregos. A Athena, uma bioroid criada pra governar a Olympus, é ok, agora um maluco do passado da Deunan que foi expulso do esquadrão do pai dela e se tornou um oficial do exército de Olympus se chamar Hades, é um pouco demais.

Mas eaí, assistiu Appleseed? Gostou? Odiou? Diz aí o que achou e, claro, qual o próximo filme que deveria aparecer por aqui.

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