O Punho Invisível do Mercado de Kengan Ashura

Depois de um longo inverno (nem tão longo e nem tão frio), retornamos com os textos de crítica. Em meio a PCs quebrados, raids infinitas de gente muito puta e afins. Mas tudo isso ficou no passado, sejam bem vindos a review da primeira temporada de Kengan Ashura.

Kengan Ashura é um anime de 2019, do estúdio Larx Entertainment (nada relevante). Sua direção ficou a cargo do Seiji Kishi (Radiant, Tsuki ga Kirei) e series composition de Makoto Uezu (Katanagatari, Akame Ga Kill), baseados no mangá homônimo de Yabako Sandrovich (roteiro) e Daromeon (arte), já finalizado com 26 volumes.

Eu consigo ver por trás da cortina

Pra efeitos de início, gostaria de me focar na produção de Kengan Ashura. Digo, não realmente na produção, mas no esqueleto parcialmente a mostra no produto final. Claramente Kengan Ashura sofreu inúmeros problemas durante seu desenvolvimento. Não sei dizer se restrição orçamentária, incompetência do estúdio, ou falta de direcionamento por parte do diretor. Mas claramente a temporada entregue pela Netflix não está finalizada.

Digo isso por uma série de evidências, a começar pelos flashbacks. Kengan Ashura utiliza de duas representações visuais distintas para os flashbacks. Uma que muito me lembra as cutscenes da série Danganronpa, e outra composta por rascunhos.

E esse é o primeiro sinal, da falta de tempo para conclusão do projeto, explico: não existe qualquer coesão entre quando utilizar um estilo ou o outro. Isso se deve provavelmente ao fato de que não seriam 2, e sim apenas um estilo. O visual Dangaronpa deveria ser A representação de flashbacks, mas provavelmente a equipe não teve tempo de finalizar todas as cenas, e optou por um mesclado.

Entenda, eu até gosto do visual rascunhado, é bastante diferente, e reflete bem o roteiro cru de filme de torneio de artes marciais. Inclusive ouso dizer que combina mais do que a versão finalizada. Só que, falta consistência, se ao menos tivessem usado rascunhos pra todos que não são o protagonista, talvez trouxesse um sentimento maior de unidade.

Mas os sinais de falta de um trabalho de pós produção não param por aí. Outra marca bastante grande está nos modelos poligonais dos lutadores. Eles não se mesclam entre si, muito menos possuem trabalho de iluminação coerente com o ambiente em que estão inseridos. Isso causa um terrível sentimento de desconforto, com aqueles personagens parecendo que estão em um fundo verde vagabundo de uma produção baixo orçamento dos anos 90.

Não bastando isso, na altura do episódio 10, antes do começo da luta do episódio, uma cena de conversa ainda continha sinalização no canto, do tipo utilizado pelo comitê durante a produção. Ninguém se deu ao trabalho de conferir o produto pronto, talvez por nunca ter alcançado esse estágio.

Houseki no Kuni é filho único

Eu me lembro do finado ano de 2017. Mais precisamente, da nossa discussão sobre os animes em CG durante o podcast de melhores do ano. Hoje, dois anos depois, vejo que Houseki no Kuni está condenado. Condenado a ser o contra-exemplo na enxurrada de produção caça níquel.

Kengan Ashura não é diferente. Os bonecos são de baixíssima qualidade, os cenários, conseguem ser ainda piores. E ainda mais bizarro é ver que os animes de CG encontraram uma casa na Netflix, como uma espécie de baixo investimento pra inflar o catálogo. Esse ano mesmo tivemos também o igualmente porco Revisions

No entanto, o caso de Kengan Ashura se aproxima mais de Ultraman, um anime que mostra alguns sinais de possuir um bom material original canibalizado por uma adaptação de merda. A coisa mais incômoda no visual é a insistência em tentar mesclar os bonecos CG com outros personagens 2D, no mesmo plano. Nunca funciona, nunca sequer parece que são personagens existindo no mesmo mundo, é terrível, torto e incômodo.

No entanto, alguns momentos de combate fazem até bom uso de CG, principalmente nos primeiros episódios da série os golpes transmitem peso e impacto. Algo que vai se perdendo com o desenvolvimento da temporada. Por falar em desenvolvimento de temporada, seria uma boa falar de estrutura.

O anime não pode ser o mangá animado

Uma coisa muito constante na comunidade é essa maluquice de que mangá e anime são experiências comparáveis e compatíveis. “Vi One Piece até o episódio X, qual capítulo do mangá eu pego pra continuar?” é lugar comum dentro da fandom. Isso é algo um tanto problemático, dentre eles por tratar mangá e/ou anime não como sua própria coisa, com ideias e mensagens, mas um mero subproduto um do outro.

Então, não existe essa maluquice de só ir adaptando o mangá numa divisão arbitrária e mágica de X capítulos por episódio. As coisas precisam ter unidade, precisam funcionar com as próprias pernas, precisam fazer sentido. E é esse tipo de raciocínio maluco que dá a luz a Kengan Ashura. Cada episódio, tem um ritmo ótimo dentro de si próprio, mas ao se olhar a temporada, nada faz sentido.

Não houve um trabalho por parte do series composition de criar uma narrativa coesa que conectasse a temporada. Ele simplesmente cortou e repartiu o mangá até darem doze episódios e parou. Então a temporada acaba, não temos uma conclusão de arco nenhum, nem um grande confronto, nem uma conexão maior por parte dos protagonistas.

A última luta, que consome mais da metade do último episódio, é entre dois figurantes recém apresentados, que não possuem NENHUM ELO com o Ohma (protagonista), seja narrativa, seja simbólica.

A grande construção da temporada, que seria a literal segunda luta do Ohma no campeonato, deveria ter sido entre ele e o filho maluco da família de assassinos. Mas não houve qualquer trabalho de adaptação, apenas replicaram o mangá. O resultado final é uma temporada em que o protagonista aparece durante o primeiro ato, daí na altura do episódio 4 ele simplesmente deixa de ser relevante, e tem uma luta descartável no 11.

O coração no lugar certo, o resto não

A minha maior frustração com Kengan Ashura é que o seu núcleo é bastante funcional. A dupla entre o lutador Tokita Ohma e o salaryman Kazuo Yamashida é muito boa. Seja como opostos, como complementos, como pai e filho adotado. Ambos se empurram e a história vende muito bem que eles foram se conectando.

E isso trabalha ainda mais contra o final da temporada. Que deveria ter sido entre o Ohma e assassino da família Kure, uma vez que esse assassino trabalha para o filho biológico do Yamashida.

Mas ao invés disso o anime despende um tempo enorme de tempo com lutas que pouco importam, primeiro para causar uma falsa sensação de dificuldade na entrada do torneio. Depois para apresentar personagens secundários que pouco importam PARA A PRIMEIRA TEMPORADA DE KENGAN ASHURA. Tanto faz o moleque que batia em bandido e agora luta MMA, ou o policial do mal, isso pode ser relevante na temporada 4, mas eu tô assistindo a primeira, se foca no centro da sua narrativa, depois expande, não o contrário.

Mas já que não podemos escrever uma crítica baseada no que queríamos ter. Pelo menos a luta do policial e o gordão foi a melhor luta da temporada, ainda que descartável. Por se tratarem de personagens com mesmo nível de relevância pra narrativa, não existia um vencedor pré-determinado (diferente da luta do Ohma do episódio 11). E o roteiro trabalha bem o balançar de quem está por cima, pelo que estão lutando, até o psicológico perturbado do policial.

No final das contas, Kengan Ashura não precisa e não promete personagens complexos, então o que ele entrega nesta luta em particular é mais que o suficiente. Por outro lado, todas as outras lutas de secundários podiam ser simplesmente puladas, não fazem qualquer falta, nem o Ohma se importa, porque irei eu?

Inclusive, especialmente vergonhosa a luta entre o assassino e o literal Jesus porradeiro, o roteiro forçou e torceu o máximo que conseguia e ainda mais para tentar provocar alguma emoção no espectador, e falhou miseravelmente. A tentativa de causar revolta contra o grande primeiro rival do Ohma, que não deu em nada, já que a temporada acabou antes da luta deles.

Maníaco por lutas

Dito isso tudo, eu ainda estou bastante interessado em buscar pelo material original. Principalmente por causa do protagonista. Ohma é aquele personagem estóico fodão, mas funciona. Tanto por ele constantemente ser arrebentado, quanto por ele ativamente buscar a dor como forma de prazer. A apresentação do grande vilão final ainda agrava isso, com a temporada tomando seu tempo para mostrar que eles são muito mais próximos do que um olhar inicial.

E a figura trágica do Yamashida é comovente o suficiente para mover a trama para frente. Ele é um perdedor, deixou que tudo lhe escapasse pelos dedos enquanto se permanecia passiva, um perfeito salaryman japonês.

Não estou insinuando que a porradaria de Kengan Ashura trás um comentário social. Estou afirmando. Toda a luta é promovida pelos ricos e poderosos em uma mescla de negócios e sadismo. Não é sútil de maneira alguma, mas é até bastante eficiente.

E mesmo as cenas de ação, quando funcionam, elas funcionam. Não tenho razões para acreditar que o mangá, com a arte que tem, não consiga entregar lutas soberbas. Quanto ao anime da Larx, só lhe resta o esquecimento.

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