O Realismo Mágico de Mirai

Mirai to the Future, ou simplesmente Mirai, é o mais novo filme dirigido e roteirizado por Mamoru Hosoda. Lançado no Japão em 2018 e concorrente a melhor animação pelo Oscar (que provavelmente vai perder para algum filme da Disney). Enfim, tristezas a parte, Mirai é um filme de realismo mágico sobre um menino, Kun, que de repente se vê no cargo de irmão mais velho, com a chegada da recém nascida Mirai.

Antes de começar para valer o texto, eu preciso de algumas ferramentas estabelecidas. A primeira, é que eu não vou me conter em dar “spoilers”, mesmo que Mirai não seja um filme de revelações e twists, talvez alguém fique incomodado com isso. Segundo, eu preciso do conceito de o que é o realismo mágico.

Realismo mágico

Realismo mágico é um estilo literário do século XX, nascido aqui, na América Latina. Ele tem em seu berço a luta contra os sistemas repressivos que ocorriam nas diversas ditaduras presentes na América Latina por esse período. Ao mesmo tempo em que era uma resposta ao estilo de fantasia empregado na Europa. E trata de um estilo de escrita que não se preocupa muito com explicações de regras e sistemas. Essa aplicação da visão mágica junto ao cenário do cotidiano permite uma maior imersão por parte do leitor, uma vez que o mundo real não funciona como um bestiário de D&D.

Segundo o crítico mexicano Luis LealWithout thinking of the concept of magical realism, each writer gives expression to a reality he observes in the people. To me, magical realism is an attitude on the part of the characters in the novel toward the world”, ou em tradução livre: “Sem pensar no conceito de realismo mágico, cada autor expressa a realidade que ele observa nas pessoas. Pra mim, realismo mágico é uma atitude dos personagens dentro do livro com relação ao mundo”.

Mas o que um gênero latino do século passado tem em relação com um filme animado japonês contemporâneo? Bom, gêneros raramente morrem, eles mudam. E fora do contexto de ditaduras do século XX, o realismo continuou a avançar e se globalizou, atingindo países de língua inglesa, que por sua vez disseminaram para o resto do mundo. Além disso, não podemos esquecer que Guilhermo del Toro é um cineasta latino e pesadamente influenciado pelo realismo mágico (Labirinto do Fauno que o diga).

Então Hosoda como mostra em uma entrevista feita ao The Film Stage no ano passado é amplamente influenciado pela “cultura ocidental”, além de, durante toda sua carreira trabalhar com essa mescla entre real e mágico no cotidiano das pessoas, fazendo dele, um exemplo do realismo mágico moderno.

O quintal se torna um aquário pra refletir os sentimentos do Kun

O cotidiano mágico

Mas estabelecido o que é realismo mágico, podemos voltar para Mirai. Mirai é um filme sobre muitas coisas, mas vamos por partes. Se vamos falar sobre esse filme, temos que começar pelo seu protagonista. Kun é uma criança, e esse fato é de extrema importância para a narrativa, e para a mensagem no filme.

É importante por essa ser a jornada de Kun, um garoto por vezes mimado, como todas as crianças são, sendo forçado a perder seu espaço como protagonista da família com a chegada de sua irmã, Mirai (futuro em tradução livre). Com essa mudança de status social dentro da casa, Kun entra em um processo de amadurecimento, até ele conseguir finalmente aceitar aquele intruso como parte de sua família.

E aqui é o ponto pra dizer, eu amo os diálogos do Hosoda. Anime é uma mídia muito autorreferencial. Como grande parte das pessoas que vai trabalhar com anime ama e vive a mídia, por ela acaba se mergulhando cada vez mais dentro de si mesma, e os diálogos passam cada vez mais de diálogos de pessoas para diálogos de personagens de anime. E isso perpassa todas as etapas da produção, da dublagem, ao character design, as escolhas de arquétipos muito bem definidos. Mas isso não é um problema, é uma característica da mídia.

Dito isso é muito refrescante ver personagens e famílias com dilemas e interações tão humanas. Eu perdi as contas de quantas vezes me vi na pele do Kun, uma vez que também sou irmão mais velho, e também tive uma certa distância entre o meu nascimento e o do meu irmão. E todo esse aspecto humano está presente por toda a filmografia do Hosoda são um dos motivos pelo qual ele é meu diretor favorito de longas animados.

Então, todo esse cotidiano extremamente relacionável acaba por colidir com a parte mágica do filme, e é através dela que o Kun vai poder amadurecer, entrando em contato com seus parentes, afinal é sobre isso que o filme trata, laços, escolhas e amadurecimento.

O cenário vai ficando mais apagado com a distância

A árvore

Uma das coisas que mais me chamaram a atenção ao começar o filme, foi primeiro ele ser lindo, mas principalmente o trabalho de cenário empregado nele. A casa da família é muito pouco conveniente, mas isso acontece porque aquela construção tem valor temático. Como a própria Mirai fala no final do filme, nós somos o produto das escolhas e decisões de todos os nossos antepassados. Então não é por acaso que a casa é construída daquela maneira.

A casa tem aquela construção para que o jardim pudesse ficar no centro geográfico, para que a árvore no centro do jardim pudesse ser o centro. E uma vez que a árvore representa a árvore genealógica da família, o coração daquele lar são os antepassados, por que foram eles que tornaram aquilo possível.

Esse é uma temática que é batida muitas vezes durante o filme, com o álbum de fotos, com os folclores antiquados, tudo traz a ideia das tradições alcançando o mundo moderno e urbano. E nessa ideia de mesclar o urbano e o rural, o antigo e o moderno, Mirai entende que precisa se conectar ao científico e ao místico, e essa figura é representada pelo Kun. O personagem mais conectado a modernidade, através dos trens, também é aquele que consegue acessar o místico através das árvores, ele está entre os dois mundos da narrativa.

Falando em trem, o filme fala bastante sobre veículos em geral, afinal, como parte da jornada de crescimento e de seguir em direção ao futuro, não existe símbolo melhor que os nossos meios de transporte, que nos movem em direção ao desconhecido. Mas é sempre importante manter os nossos laços, se não ficaremos condenados ao Vale dos Sozinhos.

Mirai do futuro

Personagens carismáticos, humanos e bem trabalhados, uma mensagem bem construída ao longo do filme, já renderia a Mirai um destaque entre os filmes de 2018, mas ele não se contenta com isso. Mirai além de tudo é um desbunde de direção.

Uma das minhas transições favoritas do cinema é a de Wolf Children, quando as crianças vão crescendo conforme a câmera vai passando pela sala. E o crescimento é acompanhado pelo cada vez maior isolamento do garoto e cada vez maior conexão da garota. E enquanto Mirai não tem nenhum plano desse nível, ele tem uma série de planos menores mas com o mesmo estilo, que aproveitam a arquitetura pitoresca da casa para fazer saltos temporais enquanto os andares mudam.

Mas nem tudo são flores, e se tem uma reclamação a ser feita, é que o CGI tá meio feinho, principalmente no plano em que o Kun anda de moto com o bisavô. Mas isso nem de longe tira o brilho desse filme que não é nada menos que maravilhoso, e ao passo que não supera Wolf Children, ao menos se equipara e tira o gosto amargo que Bakemono Ko tinha me deixou ao ser só legalzinho.

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