O idealismo em Nekomonogatari Black

 

Nekomonogatari Black ou Nekomonogatari Kuro, como você preferir chamar, foi lançado em julho de 2010. Foi o último livro da primeira temporada de Monogatari e trazia consigo a conclusão para a Golden Week mencionada diversas vezes durante Bakemonogatari, em especial Tsubasa Cat. Neste volume, Nisio Isin explica o passado da personagem Tsubasa Hanekawa de forma detalhada e nos revela a verdade por trás do relacionamento entre ela e Koyomi Araragi. No entanto, ao contrário do que muitos fãs querem acreditar, o que se passa não é e nem deve ser romantizado.

As lembranças que Koyomi Araragi tem de Tsubasa Hanekawa durante o período da Golden Week são adstringentes e agridoces. É a realização de uma aceitação, a compreensão de uma virtude em comum e a constatação de uma fraqueza em comum. Os dois são parecidos, diferentes de pessoas como Senjougahara ou Kanbaru, que mesmo quando tem os seus problemas e fraquejam, estão focadas em seguir em frente e tem a força necessária para isto. Enquanto Araragi e Hanekawa não tem esta capacidade, ambos são pessoas que são presas pelo seu passado, pelas coisas que os moldaram.

Tudo começa com um diálogo entre Koyomi e sua irmã mais nova, Tsukihi… De aproximadamente 70 páginas. A narrativa de Nekomonogatari Black vai quebrar os pilares do idealismo diversas vezes e de diferentes formas e neste caso, Nisio decidiu transpor isto para o próprio leitor. Especialmente aqueles que eram espectadores do anime. Por isto, o autor decide testar a paciência dos leitores quanto aos aspectos  que aqueles que viram o anime já achavam um pouco exagerados e eleva os diálogos corriqueiros dos personagens ao dobro do que já fazia normalmente. A conversa alongada já serve muito bem para quebrar expectativas, mas Nisio vai além, explicando através do Koyomi, e quebrando a quarta-parede, que as coisas na “realidade” são diferentes do anime. Ele dá diversos pequenos toques em relação aos personagens, desde sua aparência até a sua personalidade que servem para mostrar que o anime está glorificando ou amenizando algumas coisas para ter um apelo mais comercial. Para o primeiro caso, por exemplo, a maneira bonitinha como as irmãs acordam o Araragi que nunca foi descrita nas novels e que não condiz com a personalidade delas ou com a dinâmica de “poder” que se estabeleceu no recinto dos Araragi, para o segundo, a aparência de Oshino, que é muito mais apresentável no anime.

De qualquer forma, Koyomi e Tsukihi conversam sobre diversas coisas, mas a parte mais importante é o conselho romântico que ele pede para a irmã. Depois do longo período em que se isolou de todos, Koyomi finalmente está interagindo com outras pessoas novamente, só que ele não sabe lidar com isto. Koyomi não consegue distinguir bem relações e sentimentos, ele não sabe diferenciar o que é amor e o que é desejo sexual, por exemplo. E por assim dizer, não sabe se está apaixonado por Hanekawa. Tsukihi inicialmente tira a conclusão precipitada de que Koyomi está apaixonado, pois ela quer vê-lo se apaixonar, ela quer ver o irmão mais velho levar um estilo de vida mais saudável. Depois as ilusões se quebram para mostrar que o que Araragi está sentindo é frustração sexual. É aqui que Nekomonogatari pega o leitor.

A questão que Nekomonogatari incita em sua superfície é se Araragi realmente ama Hanekawa ou não. Isto advém dos questionamento dos próprios leitores que acompanharam a jornada do protagonista. Até mesmo as pessoas que trabalharam na adaptação de Bakemonogatari tinham suas dúvidas. Akiyuki Shinbo decidiu direcionar a primeira temporada de tal forma que iria esclarecer por que Koyomi escolheu Hitagi e não Tsubasa por que ele mesmo não tinha certeza. Para este contexto, Tsukihi é uma alegoria ao leitor que se perde em conjectura e tira conclusões precipitadas baseadas no ideal que ele está comprando. E não se engane, isto serve tanto para a conclusão de que Koyomi estava apaixonado, quanto para a conclusão de que a sua obsessão era uma manifestação de sua frustração sexual.

Em um foreshadowing de temas que ainda estão por vir, podemos sintetizar a questão dizendo que Araragi se enxerga como uma imitação do que Hanekawa realmente representa. Isto é algo que ele faz tanto conscientemente quanto instintivamente. Quando Araragi sacrificou a si mesmo por Kissshot, ele o fez por justiça, ele o fez por sentir que deveria salva-la, mas este instinto que surge nele nada mais é do que um impulso de auto-afirmação. Ele precisa disto para dar propósito a própria existência. É a única forma que Araragi tinha de lidar com sua completa falta de auto-estima naquele momento. Em suma, ele envolve os sentimentos no seu idealismo, ele tira uma vantagem do ideal para si próprio. Enquanto Hanekawa salvaguarda a justiça sem razões ulteriores, ela o faz naturalmente, o faz por fazer, sem sentimentos envolvidos.

É normal se focar nas impressões e sentimentos de Araragi, por que ele é o narrador destas histórias, mas já parou para pensar em quantas pessoas Hanekawa cativou? Dentre futuros exemplos que não serão mencionados, em Nekomonogatari mesmo vemos que Meme Oshino é impressionado e assustado pela garota. Uma aberração, o gato afligidor, toma nova forma e proporção pois foi enfeitiçado pela natureza da garota. Existe algo muito intenso e muito distinto na presidente de classe, algo que vai muito além da imagem da prudência.

Nascida de uma mãe torpe, nunca foi descoberto quem é o pai biológica da garota dentre os inúmeros casos que a responsável teve. De alguma forma, a mãe se casou com um outro desafortunado viciado no trabalho e se matou na primeira oportunidade de deixar a filha sob a guarda dele. O rapaz, embora tenha tido o bom coração para aceitar Hanekawa e ter chegado a casar para que sua nova esposa mantivesse a garota sob uma boa criação, não durou muito por causa de suas compulsões. A nova mãe, em sua angústia, encontrou conforto em um novo relacionamento e deste, surgiu um casal para cuidar de vez de Hanekawa.

A vida de Hanekawa foi cercada de relações frágeis e distantes. Nunca foi velada para ela a dura realidade, pois no fundo ninguém realmente a queria. Desde muito pequena, a garota cresceu com isto na consciência. Cresceu sabendo que era um fardo. E o desejo que surgiu disto se manifestou em um único instinto: Ser normal.

Hanekawa nasceu com essa capacidade e por sorte ou por azar, foi moldada a essa predisposição pelas expectativas sociais que a cercavam. Ela se tornou o certo absoluto, uma verdadeira encapsulação do conceito de ética. Ela se tornou, por si só, irregular, algo equivalente a uma aberração. O próprio gato sorrateiro que se aproveita da falha bondade humana não resistiu a força de vontade inabalável da justiça de Hanekawa. Em sua salvação encontrou, o gato encontrou a verdadeira aceitação, livre de quaisquer interpretações ou aspirações próprias.

E se a mentalidade de Hanekawa foi o suficiente para transformar uma aberração, que pode fazer um humano diante disto? Ninguém tem a desenvoltura intelectual ou emocional para se comparar com Tsubasa Hanekawa, fazer isto só vai remeter ao indivíduo sua mediocridade inerente. Agora imagine estar sujeito a isto durante quatorze anos.

E de forma alguma isto justifica o inaceitável. A agressão física cometida contra Hanekawa é reprovável. Por isso é tão difícil aceitar a verdade dos fatos, que a garota que é a vítima acabou criando esta situação. Por trás da perfeição do ideal existem motivações tristes e expectativas perturbadoras. E para Araragi isto é ainda mais difícil de aceitar, pois ele precisa encarar que o que serve para ele também serve para Hanekawa, afinal, embora eles sejam diferentes, eles ainda compartilham da mesma natureza.

Nekomonogatari exemplifica bem a similaridade entre Araragi e Hanekawa. Ambos guardavam angústias enormes dentro de si que estavam apenas esperando o gatilho certo para estourar. As suas ações são movidas por solidão e por isto, ambos cederam a tentação. Araragi dá sua vida por Kissshot pois ele queria encontrar um propósito para si e se transformar em uma nova pessoa numa nova vida onde poderia estar rodeado de relacionamentos. Hanekawa se tornou o que é e moldou toda sua personalidade porque no fundo ser normal era a única solução que ela havia encontrado para unir sua família disfuncional e ter um lar. No fim, quando isto não dá certo, a fatiga e o stress acumulado que são as únicas coisas que lhe restam a fazem ceder a tentação de poder libertar essa  tensão reprimida através de impulsos violentos, literalmente se transformando e adquirindo uma nova persona.

Diga-se de passagem que no fim das contas, o gato afligidor que foi encantado por Hanekawa não é mais do que um traço dela mesma. Por isto, ela, como Black Hanekawa, não se dispôs a matar ninguém. O motivo pelo qual Black Hanekawa foi agressiva com o Araragi inicialmente foi por que naquele momento ela ainda era mais gato afligidor do que Hanekawa e seu instinto ainda prevalecia, depois não demorou para que ele fosse conquistado pela garota. E ela o utilizou como desculpa para fazer o que fez, para fugir da realidade de sua situação mesmo que temporariamente até que as coisas se normalizassem.

Oshino mesmo, que tentou pará-la inúmeras vezes, nunca foi ferido gravemente. Talvez devido a sua própria proeza, mas é mais provável que tenha sido somente por que Hanekawa queria poupá-lo. E aqui, Nekomonogatari quebrou-se mais um ideal que havia sido construído ao longo de toda a primeira temporada. Antes visto como o detentor de todas as respostas, como o verdadeiro mentor, alguém que não poderia ser superado tão facilmente, Oshino se vê incapaz de fazer qualquer coisa contra Black Hanekawa. É uma derrota absoluta.

Araragi por sua vez, encontra o seu meio favorito de vencer: Sofrendo uma derrota absoluta. Diante da grandeza do que Hanekawa representa, Araragi encara a verdade por trás de seus sentimentos. Ele a ama, mas não é um amor romântico. É a mais pura idolatria. Araragi compreende que pode morrer por Hanekawa, que quer morrer por ela, que o faria daria de bom grado  para salvá-la de si mesma e preservar a imagem dela. O que Hanekawa simboliza é aquilo que Araragi já havia encontrado como uma razão deturpada para sua vida. E ele só compreende isto quando vê a possibilidade disso ir por água abaixo caso o stress de Hanekawa retornasse e Black Hanekawa decidisse que seria melhor dar um fim verdadeiro neles numa segunda ocasião. A garota até poderia manter a si mesma por enquanto, mas se ela fosse tentada de novo no futuro, ela provavelmente não iria aguentar.

E assim, Araragi se prostra diante de Shinobu. Ele se rebaixa a ela por dias para receber sua graça e poder executar seu plano. Conseguindo o que precisava, Kokorowatari, a espada que mata aberrações, Araragi iria se sacrificar para separar Hanekawa de sua nova faceta. E quando ele finalmente a confronta, ele diz exatamente o que precisa para fazer o stress dela explodir. Que ele rejeita a sua nova personalidade, que ele rejeita a sua transformação, que ela deveria se manter igual, mesmo que isso significasse ser subserviente ao lar abusivo onde cresceu.

E Hanekawa responde dizendo que o odeia. Em um turbilhão de sentimentos, ela expressa a vontade que tem agora de que Araragi morra… A vontade que tem agora de morrer. Eles são o mesmo. O que Araragi idolatra em Hanekawa é o que o tornou um herói pelo qual ela se apaixonou aos olhos dela. O que o torna fraco, a torna fraca também. E ela só é do jeito que é porque não tem amor próprio. Por que no fundo, Hanekawa se odeia. Ela se vê em Araragi e assim, ela o odeia por causa de suas críticas. E da mesma forma, ela o ama por se identificar com ele, porque ele foi sua primeira conexão emocional verdadeira.

Nekomonogatari é uma obra que deseja expressar que a idealização é mais um espelho dos seus próprios fracassos do que de suas virtudes. E ironicamente, ela serve diretamente como um contra-ponto a Tsubasa Cat ou vice-versa, já que embora Nekomonogatari explore bem os lados negativos do idealismo, o mesmo só é quebrado de fato no último conto de Bakemonogatari. O relacionamento e a visão que Araragi e Tsubasa tem um do outro os tornaria o pior par romântico possível, eles seriam incapazes de crescer e superar seus problemas um com o outro. Isto é fundamentado aqui e depois concretizado em Tsubasa Cat. E por isto, é importante falarmos da última peça do quebra-cabeças.

Shinobu salva Araragi da morte certa e se alimenta da energia de Black Hanekawa acabando com seu stress. Ela o lembra que ele não pode mantê-la viva a seu bel-prazer e simplesmente decidir morrer por conta própria. Ela demonstra aqui vontade de viver e o lembra do motivo pelo qual ele também deve valorizar esta vida. Como um símbolo de sua auto-estima, essas são palavras que marcam muito bem o espírito de Araragi, ele está deixando a si mesmo de lado por causa de seu egoísmo. Ele se subjugou a esta posição, mas ele sempre teve outra opção. Shinobu tentou falar com ele em vários momentos da novel, mas ele ignorou suas interações passando-as como ilusões. No fundo, ele não quer dar ouvidos a si mesmo. E deste ponto em diante, pode-se dizer que o silêncio de Shinobu se firmou de fato… Ou pelo menos, até Araragi cair na real e não se deixar levar por falsos amores…

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