Superando a ansiedade com a obra-prima despercebida de 2016: Amanchu

 

Você se lembra do verão de 2016? Na época, havia alguns títulos de peso surgindo. Tais como Mob Psycho 100 e ReLIFE, ambos fizeram bastante sucesso neste ano. Para um público mais nicho, mas igualmente grandioso e bem-feito, também teve The Disastrous Life of Saiki K. Havia também séries que estavam sendo promovidas fortemente pela Crunchyroll. Séries cuja qualidade e recepção são um pouco mais discutíveis, tais como Nejimaki Seirei Senki: Tenkyou no Alderamin, 91 Days e Orange.

Receberam sequências Shokugeki no Soma, Fate/Kaleid Prism Ilya, Danganroppa, D-Gray Man e Arslan Senki. Houve ainda um estranho fenômeno de delírio febril coletivo no qual as pessoas tiveram pesadelos de que havia tido uma sequência pros filmes de Berserk que era mais feia que bater em mãe.

Para os fãs de moe, New Game! estreiou nessa temporada verão, Love Live recebeu uma sequência espiritual na sua iteração Sunshine e Sweetness & Lightining apertou e alegrou o coração de muitos. E no meio disso tudo estava Amanchu, afogado num mar de opções e de marketing pesado. Não é difícil confirmar esta informação. Acompanhar a lista de usuários e popularidade através de sites agregadores como MyAnimeList e Anilist rapidamente mostra que pouquíssimas pessoas assistiram o anime. Na mesma temporada, o seu maior concorrente, Sweetness & Lightning teve pelo menos o dobro, senão o triplo de visualizações. Na temporada anterior, Flying Witch que foi feito pela J.C Staff, mesmo estúdio que trabalhou em Amanchu, também teve uma projeção de visualização muito maior. O que significa que mesmo dentro de seu público alvo, Amanchu não conseguiu atingir muitas pessoas aqui no ocidente.

Porém, o que isto significa? Seria Amanchu uma obra inferior as outras mencionadas? Bem, se você leu o título deste texto, você já sabe que não. Eis um anime que merecia mais atenção, com uma equipe veterana absurdamente competente e talentosa.

O material original é de autoria de Kozue Amano, criadora de Aria, um dos mais aclamados e importantes títulos do gênero slice of life. Seu primoroso talento artístico e sua escrita profunda e sútil já começam fortes em Amanchu e certamente exigiram muito esforço para serem propriamente animados e adaptados.

O roteiro e a composição de série trabalhados por Deko Akao foram muito bem-feitos. Ele decidiu explorar um arco fundamental que se fecha em si mesmo, escolhendo muito bem os capítulos para montar um bom cenário bucólico para desenvolver a narrativa da personagem Futaba Ooki. A série fala sobre a mudança da garota de Tokyo para Shizuoka, uma cidade rural e litorânea do Japão. Futaba tem sentido dificuldades em seu novo ambiente. Especialmente devido a separação que teve que passar das coisas que lhe eram preciosas em sua cidade natal. Porém, ela acaba por ser cativada por sua amiga de classe, Hikari Kohinata a se tornar uma mergulhadora e a explorar as belezas do mar junto com ela.

A arte da série também é fortíssima, o diretor Kenichi Kasai que trabalhou em obras como Aoi Hana, Toradora!, Bakuman, Honey and Clover e Nodame Cantabile trouxe consigo uma série de animadores e diretores que trabalhou com ele nestes projetos que são extremamente competentes, em especial a diretora de arte Chikako Shibata que dentre outros além dos citados, trabalhou no mesmo cargo em várias iterações de Higurashi no Naku Koro Ni, Chobits e Azumanga Daioh.

Não é difícil ver que a experiência dessas pessoas moldou um mundo vívido de cores e detalhes em Amanchu. A animação é fluída e versátil, fazendo bom uso da linguagem corporal dos personagens para transmitir ideias e sentimentos e também das chibi faces que tem um timing cômico excelente e por vezes geram um contraste interessante não só entre o real e o surreal, mas também entre os sentimentos positivos e negativos. É notável que o anime foi feito com muito esmero. Seja pelos characters designs detalhadíssimos que preenchem os keyframes de linhas ou pela arte dos cenários que são tão detalhados e ousados que tiram o fôlego – mas que ainda podem melhorar, pois nem sempre fazem jus a arte magnífica da Kozue Amano. Só que é claro, não podemos nos esquecer de atribuir créditos para Junichi Sato.

Sato foi o Diretor-Chefe da série. Ele já havia trabalhado anteriormente na adaptação de Aria, outro trabalho de Amano e é um dos membros mais ilustres e admirados da indústria da animação. Um verdadeiro pai para os gêneros de slice of life e mahou shoujo, com uma grande quantidade de trabalhos reconhecidos e importantes para ambos. Sato não só supervisionou toda a produção de Amanchu, como ele mesmo chegou a trabalhar no storyboard dos episódios 1, 5 e 12. Sendo dois destes episódios os mais importantes da série junto com o episódio 9 e o outro é um dos mais dinâmicos em sua “ação”. Não há dúvidas de que ele foi uma ponte excelente para transmitir a visão de Kozue Amano para a J.C Staff.

E o que o anime não pôde alcançar em relação a natureza surreal e devaneadora do traço e arte da Amano, ele consegue compensar ditando a atmosfera pelo tom da música. Aqui Sato desempenha novamente um papel fundamental por ser também o Diretor de Som e por determinar quais são os acompanhamentos perfeitos para as cenas que estão sendo exibidas. Ele supervisiona as cenas para que animação e música estejam em perfeita harmonia. Sato é experiente nisto e é um dos motivos pelos quais seu trabalho é mais reconhecido, especialmente no caso de Aria. Em Amanchu ele faz o que precisa com maestria, aproveitando as composições de Gontiti.

Uma excentricidade à parte, Gontiti é uma dupla de violeiros com mais de 30 álbuns lançados, que tocam em diversos estilos. São conhecidos em especial pela bossa nova. Trabalharam algumas vezes com filmes, mas a única trilha sonora de anime que fizeram foi a de um  OVA cult e obscuro do slice of life, Yokohama Kaidashi Kikou, de 1998. A trilha que eles fizeram naquela época é muito elogiada e é tida como um tesouro pelos fãs do gênero. Curiosamente, Aria, o outro anime adaptado de Amano que teve direção de Junichi Sato teve suas composições feitas pelo grupo Choro Club, conhecido dentre seus diversos estilos principalmente pelo chorinho e que compôs a continuação de Yokohama Kaidashi Kikou, Quiet Country Cafe.

Mas… E daí? E daí que todas essas pessoas estiveram envolvidas neste projeto? Será que alguém se importa além de mim? Sera que você que está lendo este texto agora vai se interessar? Às vezes não posso deixar de sentir que quanto mais fundo eu entro na cultura otaku, mais sinto que fica difícil encontrar alguém com as mesmas ideias, gostos e expectativas.  Talvez eu tenha chegado num ponto em que estou pregando uma missa para fieis de ouvidos tampados. Existe algum propósito nisto? Eu realmente não estou perdendo o meu tempo?

Certa vez eu falei de Amanchu num podcast como uma recomendação e eu acho que ninguém realmente levou a recomendação pro coração apesar de todo o carinho com o qual falei do anime. Pelo menos, ninguém nunca me disse que assistiu, nem mesmo os participantes do cast em questão. Isto não é um problema, isto não é uma condenação, é uma triste constatação… De que uma mensagem foi enviada e não encontrou um receptor.

As pessoas procuram relacionabilidade. É natural, nós precisamos de algo que afete nosso ego, que faça com que sejamos capazes de exercer nossa empatia e isto é algo que vai ser diferente para cada um. Só que em um meio tão vasto de opções, pareço me perder num mar de falsas esperanças que sugam a minha motivação ao invés de dar retorno ao meu investimento pessoal de tempo, sempre a procura de alguém com quem eu possa compartilhar os meus interesses…

Você já se sentiu desconfortável em ambientes que não eram familiares? Você já sentiu medo de interagir com as pessoas? Já se apegou ao passado? Já se sentiu inseguro ao dar o primeiro passo frente à uma situação? Já se comparou depreciativamente com outras pessoas? Já sentiu que não fazia parte do grupo? Já sentiu que foi deixado para trás? Já sentiu que não sabia o que queria da vida? Já sentiu que estava atrasando a vida dos outros? Já sentiu medo do futuro?

Talvez alguns de vocês saibam destas sensações melhor do que outros, mas acredito que todo mundo é capaz de lembrar momentos nos quais passou por algo parecido. Todo mundo já experienciou a ansiedade. Todo mundo já conheceu o medo. E é neste nível de detalhes e com muita delicadeza que aos poucos somos apresentados aos anseios de Futaba Ooki em Amanchu.

Recém-chegada a cidade de Shizuoka, Futaba não tem lidado bem com sua mudança. Ela é bastante hesitante e é incapaz de tomar uma atitude por si só. Como alguém que passou boa parte de sua vida ao redor das pessoas, mas que nunca fez realmente parte de um grupo, quando Futaba finalmente fez laços se tornou muito mais difícil para ela lidar com a distância. Sua insegurança demonstra o seu medo de interagir com os outros. O medo de ser rejeitada e da perda que é inerente de todas as relações.

Por isto, Futaba se prende demais ao seu passado. Condenando sua própria felicidade e se perdendo na tela de seu celular buscando conforto na conexão que tinha com suas amigas de Tokyo que precisou deixar para trás. Ela é uma vítima de si mesma, onde o medo do presente a faz recorrer ao passado e as lembranças felizes tornam sua realidade ainda mais sufocante. Cria-se um ciclo dentro de si mesmo onde a ansiedade consome seu ser e a tristeza se torna um estado natural de humor.

E é aí que entra Hikari Kohinata, ou Pikari, como prefere ser chamada. Pikari é da mesma classe de Futaba e da mesma idade, mas é uma garota completamente diferente. Totalmente focada no presente e em aproveitar a vida ao máximo, Carpe Diem é algo que ocorre a ela naturalmente. Ela é atraída muito rápido pela presença elegante de Futaba e busca nela uma amiga, apelidando-a assim de Teko.

Mais do que uma oportunidade que lhe foi dada, foi um grande alívio para Futaba encontrar alguém. Ir para a escola todos os dias se tornou uma tarefa mais simples agora que ela sabia que teria uma amiga para acompanhá-la. O seu presente passou a ser tolerante. Só que como tudo no mundo e toda relação, essa oportunidade é só o começo. A paixão de Pikari é mergulhar, é sua ligação com o mar e com a aventura que é explorar o imensurável. Sendo do jeito que é, foi espontâneo para Pikari compartilhar sua visão com Teko, de quem quer se aproximar, mas o que ela fez foi só mostrar para ela esse mundo. Pikari não força essa decisão em Futaba, ela não força seus valores nela, mas ela estende a mão para Futaba saber que se ela quiser, Pikari vai estar ali.

Teko então dá o primeiro passo adiante, pela admiração que sente pela postura de Pikari. Ela finalmente abaixa sua guarda e se permite uma relação com outra pessoa, com algo novo e desconhecido. E é claro, ainda há muito que ela precisa mudar e a personagem ainda irá amadurecer. O mergulho inicial na piscina que nada mais é do que boiar na superfície de todas essas questões, simboliza o início da mudança de perspectiva da personagem e a profundidade que ela ainda precisará desbravar conforme ela irá crescer, já que o objetivo final se torna um mergulho no mar sob águas abertas. Mas esse primeiro passo também significa exatamente tudo isto.

Algo que somos incapazes de ver quando a gente se perde dentro de si mesmo é o quanto do que sofremos é nossa própria culpa. Por isto, o que realmente precisamos é uma forma de perceber isto e transformar nossos sentimentos ruins em algo positivo. E existe uma maneira de transformar a ansiedade, fazendo o seu resultado final não se tornar o medo, mas sim o excitante. Basta se dar novas oportunidades e encarar a possibilidade de que delas podem surgir novos sonhos. E é isto que Pikari significa para Teko e o que ela a ensina com o passar do tempo. O ponto chave, no entanto, não é que Pikari proporcionou essa nova visão de mundo para Teko, mas sim que Futaba permitiu que Pikari compartilhasse essas experiências com ela. E nós, em contrapartida, somos tocados por que nós decidimos assistir este anime e compartilhar desta experiência.

Sim, nós. Por que acredite ou não, Teko é uma self-insert. Só que ela não está aqui para fazer com que você realize suas fantasias, ela está aqui para que você, público alvo de um Iyashikei, se relacione tanto que vai se sentir muito mais imerso no mundo criado por Amanchu, na progressão narrativa da história e nas mensagens que Kozue Amano quer passar.

A protagonista sofre com ansiedade de forma tão realista e compreensível, que é fácil qualquer um se identificar com as suas dificuldades, pois é algo que vivemos durante o cotidiano. As mesmas coisas que nos levam a buscar conforto na ficção são as coisas que Teko está superando, são os problemas que ela está enfrentando e que no fim das contas, estão mudando a sua perspectiva também. O impacto que a obra tem no espectador por causa desta personagem é algo que vai além de uma boa escrita e se torna uma lição de vida, pois aqueles que são tocados, irão viver a mudança tal qual Teko.

Eu ainda não tive contato com um personagem com o qual eu me relacionei tanto quanto Ooki Futaba e alguns diriam que talvez por isto a impressão que tenho seja tão forte. Eu não sinto o mesmo, houve outros personagens em outras histórias com as quais me relacionei também, eu acho que a diferença é que Amanchu é belo e profundo em sua simplicidade e no fim das contas, essas são as coisas que realmente importam… E eu queria me sentir seguro de que tenho palavras para fazer jus ao que este anime me faz sentir e ao que ele me ensinou, mas eu não sinto, nem de longe. Ainda assim, eu quero dar este passo adiante e tentar de novo. Quero poder compartilhar isto com alguém, por que talvez alguém vá sorrir e chorar assistindo essa bela obra que nem eu. Talvez este alguém seja você. E talvez você tenha algo para me mostrar também.

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