Sakura Clear Card: Pra que fazemos continuações?

Recentemente o anime de Cardcaptor Sakura: Clear Card chegou ao seu fim. Mas enquanto ele passava, semanalmente eu me perguntava, “por quê essa história existe?” e semanalmente eu entregava a ele o benefício da dúvida. Mas com o seu fim, posso finalmente dizer que Clear Card existe para pagar os boletos da entidade Clamp.

Olhando para o Passado

 

Eu primeiramente preciso dizer que não sou lá o maior fã dos trabalhos da Clamp. A maior parte eu não consumi, e dos que sobram acho grande parte medíocre ou pior. Mas é interessante que Sakura se destaca entre as obras do grupo.

Cardcaptor Sakura é uma história com a qual eu tenho um apego emocional forte, vinda de memórias da época em que ela passava na tv brasileira, seja nos canais a cabo, seja na tv aberta, uma época de infância onde o senso crítico ainda inexistia.

Então, quando anunciaram que a Clamp voltaria a mexer na obra me deu um certo receio. Afinal hoje no alto dos meus vinte e poucos anos, saborear algo com a inocência de uma criança não seria mais viável. Com o anúncio da adaptação feita pela Madhouse, foi a hora de voltar a franquia e confirmar minhas suspeitas, ou até, porque não, queimar a língua.

Logo vieram os primeiros episódios e um sentimento de que algo errado estava acontecendo, ou melhor, algo não estava acontecendo. NADA estava acontecendo. E quando eu olhava as pessoas reagindo na rede mundial de computadores, o que eu via era pessoas dizendo que aquilo era Sakura, que não estavam surpresos com a lentidão das coisas.

Foi neste instante, com o medo de estar sendo traído pela minha memória, que eu fui ler o mangá original.

Eu li Cardcaptor Sakura pela primeira vez em 2018, e com essa leitura muita coisa ficou clara. A primeira delas (e a relevante para esse texto) é que não, a enrolação não é tão característica assim, pelo menos não do primeiro arco, que trabalha bastante coisa no curto período de tempo que tem para acontecer.

Mesmo o segundo e último arco do mangá original, apesar de mais arrastado trabalha e dá desenvolvimento para praticamente todos os personagens nomeados, todos eles ressoando com a temática de amor e suas muitas formas da obra, e ele encerra como deveria.

 

Em busca do cheque perfeito

 

Sempre que uma continuação de alguma obra é anunciada, especificamente de obras aparentemente concluídas, um alarme soa na minha cabeça. Esse alarme se pergunta qual o input criativo que aquele retorno representa, e às vezes se surpreende, como em Rebellion, terceiro filme de Madoka Magica, ou no God of War  de 2018.

Mas normalmente eu confirmo minhas suspeitas. Não existe input criativo, aquilo está sendo produzido única e exclusivamente por necessidades mercadológicas. Apesar de que mesmos nestes casos, às vezes nos é entregue um bom entretenimento, como está sendo o caso da nova adaptação de Captain Tsubasa.

E Clear Card infelizmente não entra nem no primeiro, muito menos no segundo caso. Cardcaptor Sakura Clear Card é uma obra absolutamente dispensável e descartável, que não demonstra nem sequer um pingo de carinho para a obra originaria dos anos 90.

 

Nada acontece feijoada

 

São muitos pontos que se conectam para essa sensação de nada acontece feijoada. Começa pelo uso do tempo, produções artísticas tendem a demonstrar o grau de importância do que está acontecendo na narrativa pelo tempo dispendido em certo momento. E com isso, Clear Card mostra que o que realmente importa é: o piquenique.

A questão não é que ele estica muito os momentos slice of life, isso não seria um problema per se. Yotsuba& é um mangá excelente focado única e exclusivamente em situações corriqueiras e cotidianas. Mas aí é que está a diferença, situaçÕES, não situaçÃO.

Yotsuba& explora uma quantidade gigante de cenários e situações, a criatividade do Azuma Kiyohiko em explorar as reações da Yotsuba em contraste aos momentos em que ela está inserida e aos personagens a sua volta faz com que um gosto refrescante venha a cada capítulo.

Falando em personagens, esse é o segundo motivo pelo qual Clear Card falha enquanto slice of life. Slices of life precisam de um elenco que traz em suas dinâmicas as suas diferenças de personalidade. Os atritos e as relações precisam carregar o espectador pelas histórias, seja em histórias mais puxadas para a realidade, como Genshiken, seja nas histórias mais fantásticas, como Aqua/Aria.

Já Clear Card tem um elenco muito (bland), quase todos os personagens são basicamente indistinguíveis entre si. Todos eles são muito bonzinhos, muito simpáticos, gostam de tudo, são amigáveis, pessoas tão irreais que fazem com que todas as interações entre eles sejam na verdade a mesma relação.

As únicas exceções são o Kero, o Yue e a Meilling, uma personagem original do anime e os dois outros que estão, em maior ou menor grau, jogados a escanteio. O foco fica na parte escolar, esta sendo a pior parte do elenco por uma distância considerável.

E se o slice of life não funciona, a parte cardcaptor é ainda pior. A maioria das cartas não apresenta NENHUM desafio, e as que sobram são levemente difíceis, com no máximo o uso de uma, estourando duas, cartas diferentes.

E eu entendo, entendo mesmo, que a série original (pelo menos o mangá), era nessa pegada também no ambiente cardcaptor da coisa. Mas veja bem, o original saiu fazem VINTE ANOS, não dá pra você achar que o que era aceitável narrativamente nos anos 90 continua sendo relevante. Se for pra consumir o mesmo, que consuma o original, estamos em um outro mundo, outra maturidade de mídia, e mesmo o anime original já resolvia parte do problema.

 

Amor ao projeto

 

Fora isso, eu quero entrar um pouco na minha seção de nitpicking, que pode até parecer bobo, mas é nos detalhes que se nota o cuidado que foi tomado para se produzir algo, e olhar para os detalhes de Clear Card só me deixa triste.

A começar pelo tempo, QUANDO ESSA HISTÓRIA SE PASSA? Porque a obra original é claramente ambientada nos anos 90, com walkie talkies e tudo mais. Já essa, dois anos depois, possui smartphones e drones, afinal quem se importa com consistência?

O outro grande problema, este por parte do estúdio, é que eles não se deram ao trabalho de rever a adaptação original para decidir se tornariam ela canon ou não nessa segunda iteração.

Ao não fazer isso, criaram um buraco gigantesco na lógica daquele mundo, já que no segundo filme, a casa do Eliol é demolida para a construção de uma espécie de parque. Esse filme é canon para o anime, ao mesmo tempo em que a Akiho mora na casa do Eliol, que não deveria existir.

E o último vacilo é o primeiro encerramento, não que ele seja ruim, muito pelo contrário, gostaria inclusive que a série inteira tivesse adotado aquela identidade visual. Mas o problema é que os personagens parecem muito mais velhos naquele encerramento que na série em si, que me dá um sentimento de que houve alguma falta de comunicação por parte da Madhouse.

 

Clear Card

 

Falando desse encerramento, ele realmente representa tudo que eu queria para esse terceiro arco. Personagens aparentemente no ensino médio. Isto resolveria o problema da inconsistência temporal, isso daria um maior espaço para o crescimento dos mesmos, afinal o que pode ser trabalhado na infância daqueles personagens JÁ FOI FEITO NA SÉRIE ORIGINAL.

Utilizar de um envelhecimento do elenco permitiria abordar temas de uma maneira mais madura (mesmo que minimamente), traria algum sal para aquele romance sem graça e que não sai do lugar entre a Sakura e o Syoran (mesmo que não haja nada impedindo o casal de qualquer coisa), seria uma visão renovada, e não essa longa punheta de 22 episódios que se fossem 10 ainda seria longo demais.

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