O peso dos sentimentos em Hitagi Crab

Bakemonogatari foi lançado inicialmente como uma Light Novel de duas partes em 2006. Os dois livros são uma coletânea de contos de Nisio Isin que já haviam sido publicados na Mephisto Magazine. Apesar de cada conto abordar uma história diferente, eles ainda são ligados por uma cronologia e temática. Irei como já ressaltado em artigos anteriores, destrinchar e falar sobre o tema de cada um dos arcos das Light Novels lançadas. A série Monogatari é um grande estudo de personagens e uma de suas principais temáticas é a perspectiva. Portanto, quero verificar como seus personagens evoluem e como a perspectiva se destaca com o passar do tempo. O foco de hoje será no primeiro arco: Hitagi Crab.

É interessante como Nisio Isin gosta de trabalhar o acaso em suas obras. A convergência de situações não chega a ser destino, mas é como se houvesse uma atração inata entre as coisas. As superstições dão frutos, neste caso. E assim, talvez por já ter encontrado uma aberração anteriormente, Koyomi Araragi se depara com Hitagi Senjougahara. Um acidente faz com que ela caia nos braços dele e inevitavelmente, faz com que ele entenda o quão absurdamente leve ela é.

Algo é desperto em Araragi ao ver alguém em uma situação similar à que ele passou. Então ele passa a buscar informações sobre a garota. E logo ele é intimidado e ameaçado por ela, de forma bem agressiva, para se afastar. Mesmo assim e mesmo sofrendo danos por causa do método utilizado por Hitagi, ele se dispôs a ajudá-la.

Hitagi Senjougahara. A princesa reclusa é como alguns a descreviam devido a sua presença evanescente. Haviam paredes construídas ao seu redor, sinais que claramente serviam para manter todos afastados. Inegável a sua beleza, seja pelo físico ou pela fragilidade e graça que emanava. Inegável também a sua inteligência, já que estava sempre entre os melhores de seu ano. Certamente o seu peso e a estranha distribuição de sua massa corpórea a colocavam em uma situação anormal, só que Senjougahara não tinha nenhum amigo. Ela não procurava interagir com ninguém e não queria que ninguém interagisse com ela. Por que ela não consegue confiar em ninguém.

Foi em uma tentativa de estupro que Senjougahara foi traída pela própria mãe. A mãe que uma vez clamou pela vida de sua filha, agora permitia que um figurão religioso fizesse o que precisasse com o corpo dela. A mente fraca foi corrompida pela ganância de aproveitadores. O que quebrou a garota, no entanto, não foi o trauma da situação, mas a validação que buscava da mãe. O desejo de Senjougahara era de que as coisas voltassem ao normal, mas a situação só foi agravada por dívidas e brigas. Ela perdeu tudo quando os pais se divorciaram. O peso da culpa recai sobre a garota que sentia que se não houvesse escândalo, as coisas não teriam ido tão longe.

Para Senjougahara, se importar com os outros é um fardo, por que ela é quem mais se fere no final. Por isso, ela entrega a sua culpa, sua tristeza e o que mais havia relacionado a sua mãe para o Deus caranguejo. Ela queria se livrar do sentimento de culpa que a sufocava. Depois disso, no seu âmago, ela criava barreiras para afastar os outros por que não conseguia mais confiar em ninguém. Somente com o tempo que Hitagi se deu conta do que perdeu e passou a buscar uma solução. Não ajudou o seu complexo que ela foi enganada por farsantes mais de uma vez.

E essa é a garota que Araragi conhece ao oferecer ajuda para ela.

Alguém que evita conexões emocionais e que afasta os outros através do seu jeito ácido e severo de ser. Conforme vemos não só através de intimidação e ameaças, mas também das respostas fortes e do abuso verbal de Senjougahara.

Alguém que tem a esperança de um dia ser capaz de fazer isso e se conectar com uma pessoa normalmente. O desejo evidenciado pela sua busca por ajuda e por ainda ter esperança, mesmo desconfiada e mesmo após ser enganada tantas vezes.

Alguém que é extremamente autoconsciente em relação ao próprio corpo e que tem receio dos desejos dos homens. Conforme vemos em todas as situações com o Araragi em que ela demonstra desconfiança. Conforme vemos com o seu receio das vestimentas xintoístas que Oshino usa para o ritual de invocação.

Alguém que quer que seu corpo seja desejável e quer sentir desejo por outrem. A expectativa confirmada ao pedir para que Araragi elogie o seu corpo e o desejo por tentar espiar ele no banho. E ainda mais, quando entendemos que ela utiliza seu corpo, sua beleza e sua presença de forma sexual não só por ser autoconsciente, mas para intimidar os outros. Tal qual ela faz com Araragi em sua casa para testá-lo.

 Uma garota que quer deixar de fugir dos problemas, mas que ainda foge das pessoas.

Quanto mais se pensa sobre Senjougahara, mais fica claro que neste ponto da história ela é a execução perfeita do arquétipo Tsundere. Só que ao invés de características genéricas, os aspectos que formam o arquétipo são explorados profundamente.

A solução dos problemas é encontrada em Oshino, um especialista em aberrações. Araragi já foi ajudado pelos seus serviços antes, então guiou Senjougahara até ele. Para Oshino, no entanto, as pessoas são responsáveis por salvarem a si mesmas, o máximo que ele faz é dar uma forcinha. Suas atitudes aqui, condizem com seus ideais de mediador, conforme vimos anteriormente em Kizumonogatari.

Senjougahara nota uma presença a mais na escola de cursinho abandonada. A curiosidade fala mais alto e ela questiona o que é a garotinha sentada no canto da sala. Oshino então diz que nomeou a velha Kissshot que perdeu seu nome de Shinobu. Uma variação de kanji dentro de Heartunderblade, capturando a essência de Kissshot. É notável aqui, a rispidez de Araragi com relação a situação. Ele não quer compartilhar o íntimo dele com Senjougahara de tal forma, por isso tenta ignorar a situação com a ex-vampira. É notável também apesar de não tentar forçar a situação, ele tem interesse e curiosidade pelas circunstâncias de Hitagi. Ele se para quando sente que está passando dos limites e se arrepende quando sente que foi rude. Porém quer saber mais sobre ela, ironicamente, se vê incapaz de fazer o mesmo.

O mais interessante de destacar no entanto é a resposta de Hitagi. “O oposto do ódio não é o amor, é a indiferença”.

Após uma rápida negociação, Oshino realiza os preparativos para trazer um deus à tona, enquanto Araragi e Senjougahara vão até a casa dela para se purificarem.

O ato de purificação consiste em tomar um banho frio e vestir roupas limpas. O que determina como um deus aparece é o clima e o ambiente, então o ritual se faz necessário. Porém, esse momento de purificação é carregado com uma leve tensão sexual. Senjougahara naturalmente sai do banho pelada, o estranho é ela não se incomodar com Araragi. Não é como se ela confiasse completamente nele neste momento, mas ela demonstra querer confiar. Por reconhecer os possíveis lados positivos nele, por querer recompensá-lo com uma boa visão de seu corpo, por querer que ele elogie o seu corpo e que não tenha medo de encará-la enquanto isso. E acima de tudo, por querer testá-lo fazendo isso para ver como ele reage e descobrir se ele é um rapaz de virtudes.

Paralelo à situação que é descrita temos os pensamentos de Araragi. E lá nós vemos uma mistura de estranheza, desconforto e excitação. A maneira como ele encara a situação é de que não é igual a maneira como ele imaginava ou idealizava. Não é ruim, mas o apelo é diferente. A maneira como foi demonstrada por Senjougahara, a maneira como ela o provoca e brinca com ele é visto como algo infantil. Koyomi distingue aqui, a noção de nudez com a noção de sexualidade e encara Hitagi com naturalidade, como um ser humano e não como um objeto.

E então percebemos o que está acontecendo, qual é o teste. Senjougahara utiliza sua sexualidade para intimidar Koyomi e ver como ele reagir as provocações. O cenário cômico é trabalhado sutilmente de forma séria para causar uma impressão positiva nos personagens. E sabemos que no fim, o fato de que Araragi trata aquilo com naturalidade e não como uma obsessão ou de forma esdrúxula que ganha a confiança de Hitagi. Motivo pelo qual ela o convida para comer caranguejo depois e provavelmente é desde esse ponto que ela sente que gostaria de ser sua amiga.

Interesse também que sabemos que depois disto ela tentou espiar Araragi durante o banho. É um pouco da provocação de antes, mas já é uma demonstração do interesse de Senjougahara.

A cerimônia de orações para o deus caranguejo tem o objetivo de livrar Senjougahara de seus problemas com peso. É o clímax do arco devido a força da resolução de Hitagi de carregar os próprios fardos. No subtexto, no entanto, a cerimônia é uma forma de reviver o trauma da garota.

Hitagi se vê em um papel ativo como causadora do problema, bem como ela sentiu outrora. A culpa que Senjougahara sentia era pela necessidade de afirmação que queria da mãe. Ela sabe, no entanto, que foi ela que se afastou quando a mãe entrou para o culto. Não só isso, como talvez ela seja o fator que fez com que a mãe se deixasse levar mais pelo culto. Já que ela tentou recuperar o relacionamento se esforçando na escola, mas não buscou uma conexão com a mãe. Depois do incidente, esse é um fato que já não há mais como mudar. É um relacionamento que não tem reparo e por isso, o peso da culpa era tão grande. Essa culpa transferida para o deus caranguejo é o cerne do problema, diretamente causado por Senjougahara.

Ou talvez seja mais correto dizer que a Senjougahara passou a fazer parte do deus caranguejo. Os deuses como Oshino diz, são figuras que ao mesmo tempo estão e não estão ali. Eles estão em toda parte e em lugar nenhum. O que fez com que Hitagi perdesse o peso e os sentimentos não foi o encontro com o caranguejo, foi uma mudança de perspectiva. Foi o cansaço tão extenuante de toda situação que a levou ao ponto de preferir agir com indiferença. O oposto do ódio é a indiferença, que também serve como oposto do amor ou de qualquer tipo de sentimento. Havia uma predisposição em Senjougahara em esquecer o que ocorreu e isso a trouxe até aqui.

Numa última tangente, é interessante notar que a Senjougahara fala disto quando Araragi demonstra indiferença à Shinobu. O arco trabalha um paralelo entre os dois e vemos que neste momento, Araragi se encontra preso na mesma perspectiva que Senjougahara.  É implícito aqui que tal como ocorre para Hitagi, Koyomi precisa aceitar sua situação para ser capaz de se salvar. Ele age de forma indiferente para com Shinobu por que no fundo, ele se importa demais com isso.

O deus caranguejo age na função de opressor, chegando a atacar Senjougahara. Ele age em função da vulnerabilidade e confusão de Senjougahara. Oshino, comparavelmente é a ferramenta utilizada para afastar o opressor. Equiparado ao tênis espetado que ela usa para afastar o homem que tentou estupra-la antes.

E Koyomi Araragi age na função da mãe de Senjougahara, só que de forma diferente. A mãe de Senjougahara não fez nada para impedir que o pior acontecesse. Araragi desde o começo guiou Hitagi para que ela pudesse encontrar uma solução para o seu problema. Não só isso, como Araragi também demonstrou preocupação para com Hitagi quando ela foi atacada pelo deus caranguejo. No fim das contas, Araragi não teve um papel ativo em livrar Hitagi de seu problema. Hitagi salvou a si mesma ao se desculpar e agradecer o deus caranguejo por carregar o seu fardo e decidir fazê-lo por conta própria de agora em diante. Só que o papel de Araragi como um suporte emocional para Hitagi foi importante para ela. O simples ato de apoiar era todo o incentivo que garota necessitava.

Senjougahara não pode mudar o passado, mas parafraseando suas próprias palavras, ela pode pelo menos ganhar algo com essa experiência. E aqui ela encontrou em Araragi alguém em que ela poderia confiar de verdade. Ela encontra uma relação que pode preencher o vazio deixado pelo laço que ela perdeu. A honestidade do pedido de amizade de Senjougahara e seu sorriso tocam Koyomi. O arquétipo de Tsundere se conclui com a exposição sútil dos sentimentos que estavam sendo guardados. Poucos autores têm tanto cuidado em retratar seus personagens. Nisio Isin o faz como um mestre.

O epílogo do arco é um simbolismo simples, porém bonito. Araragi se pesa na balança e descobre que está pesando 100 quilos, ou seja, o deus caranguejo transferiu o peso de Hitagi para ele também. O peso acrescentado à balança de Araragi significa que ele passou a carregar o peso dos sentimentos de Hitagi também. A impressão que a garota causou foi tão forte nele que Araragi é incapaz de deixar isso para trás. Compartilhando desse peso, agora Araragi pode se ver apto a se abrir mais para ela. O símbolo dessa conexão serve para nos indicar o que o futuro nos reserva quanto a esse relacionamento. Mas isso é outro conto…

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