As muitas faces de Tomie

Tomie é um mangá de três volumes que foi lançado entre 1987 e 2000. A arte e o roteiro são de Junji Ito (Uzumaki, Fragmentos do Horror), sendo sua estreia. A obra foi publicada nas revistas Gekkan Halloween (Ten Nights of Dreams, Dark Cat), uma revista shoujo, e posteriormente na Nemuki (Yami no Koe, Dokuhime), uma revista josei

Tomie ainda foi adaptado para anime com um OVA em duas partes no Junji Ito Collection, pelo estúdio DEEN (Ao Oni, Pupa). Além disso, uma série de filmes japoneses já conta com nove produções, sendo o mais recente Tomie Unlimited de 2011.

O mangá permanece inédito no Brasil, sendo essa review baseada na versão Deluxe da Viz, que compila os três volumes em um capa dura.

Antologia pero no mucho

Mas sobre o que é Tomie? Tomie é uma coletânea de contos sobre uma moça muito formosa. Talvez a moça mais formosa que já existiu. Ela é tão bonita, mas tão bonita, quem não há homem que resista. Só que tem um pequeno problema, ela causa no homem atraído os seus instintos mais primitivos. Que, no caso, é matar e mutilar a pobre jovem. O twist é que Tomie é um ser imortal, e de seu cadáver mutilado, tal qual uma planária, surgem uma infinidade de outras Tomies, e o ciclo se repete.

Como já ficou mais do que óbvio, Tomie é um mangá de terror/horror com uma tonelada de gore. Local comum para o Junji Ito, mas ainda digno de nota para o navegante de primeira viagem. Falando em primeira viagem, curiosamente Tomie, em sua primeira versão, foi a obra de estreia do Ito, e esse é talvez o aspecto mais interessante da obra.

Uma obra que foi lançada literalmente aos pedaços, com seus pequenos contos sendo publicados ao longo de dez anos deixa sinais. Principalmente no quanto o artista muda nessa jornada.

Começando com o pé direito

O Ito, de um novato que trabalhava como dentista, até o Ito já consagrado e recém saído de Uzumaki. As linhas contam, os quadros contam, os roteiros contam. Se ao começar a antologia, vai se deparar a um traço vacilante e inseguro, com roteiros mais perdidos e inocentes. Ao terminar vai encontrar um artista maduro, seguro do gênero que se encontra e das temáticas que quer contar.

Tomie trata sobre obsessão de maneira geral. Da cobiça pela garota que esnoba o ponto de maior ego, e também maior insegurança de alguém. De querer provar pra aquela pessoa que ela está errada, que você é de fato bom no que faz. Ao menos essa é a Tomie do final.

Já no começo, é muito mais sobre uma garota que não se conforma no molde da sociedade. Que teve um caso com uma figura de poder, e pagou com a vida por carregar um filho indesejado. Introjetando um sentimento de culpa nos cúmplices, uma sociedade presa em um conchavo de eliminar o diferente. Eliminar o desajustado. Eu nem preciso dizer qual me interessa mais enquanto história.

Rebeldia e juventude

A verdade é que Tomie enquanto conceito é algo muito juvenil. É a rebeldia, a anarquia de tempos mais simples. Um conceito um tanto quanto bobo de uma garota manipuladora, com um charme bizarro. Mas mais do que tematicamente ser sobre obsessão, claramente o próprio autor se viu preso a personagem.

Não havia mais lenha pra queimar naquela história, mas lá estava o Ito lançando mais um capítulo. Só mais um instante, só mais uma página na companhia dessa jovem encantadora, será pedir demais?

A verdade é que era, e a história decai bastante de qualidade conforme os contos passam e as páginas se acumulam. Na altura do último quarto, elas já se tornaram uma grande massa amorfa de mesmice e lugar comum. E não existe nada pior para uma história de terror do que se tornar previsível.

Mas mesmo no seu ponto mais baixo, uma coisa é inegável, o charme de Tomie. Todo o trabalho do Ito realmente deu frutos, e Tomie irradia carisma a cada página. A cada sorriso sarcástico. Cada quadro e olhar. Aquela figura liberta de qualquer amarra, até mesmo a maior delas, a morte.

Talvez seja por isso que o autor seguiu retornando a personagem. Voltava a ver uma versão de si mesmo mais jovem, menos cobrada, afinal era apenas um amador tentando a sorte nos mangás. Ou talvez o próprio Ito recebesse visitas da Tomie durante a noite, que zombava da sua habilidade como artista, rindo de como não seria possível deixar impresso em papel toda a exuberância da personagem.

Etéreo e passageiro

Tomie não é a melhor obra do Ito, muito pelo contrário. É uma história que não soube quando acabar, que vacilou entre a narrativa linear e a antologia, sem tomar partido e acabou por não ser nem um, nem outro. É uma história um tanto quanto boba no seu cerne, com uma boa dose de machismo ao criar esse grande monstro que não passa de uma mulher que se permite viver, ainda que isso seja um retrato da época em que foi concebida.

Mesmo assim Tomie ainda encanta, com essa personagem que vem e vai da sua vida quando ela bem entender. Essa brisa que bate e não pode ser capturada, seja por alguém, seja por uma câmera. Essa criatura tão poderosa que dominou o próprio criador a seu bel prazer.

Se vale de algo, tome cuidado quando andar na rua, num dia bem movimentado, com muita gente, nunca se sabe quando alguém vai ser a sua Tomie. Ou ainda pior, quando você vai ser a Tomie de alguém.

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