As dificuldades de adaptação de Violet Evergarden

 

“Eu vou dizer algo francamente: Violet Evergarden passa a sensação de que será um trabalho árduo, mas também é um que irá se tornar uma experiência que vale a pena de maneira constante. Por favor, assista até o final e eu espero que você vá se emocionar por nos acompanhar.”

Após quatro semanas e mais quatro episódios, o anime de Violet Evergarden encontrou sua própria voz, mas não escolheu as palavras certas para transmitir sua mensagem da melhor forma possível. Haviam mudanças que eram necessárias ser feitas para que a novel com seu formato episódico e não cronológico pudesse ser adaptada e que o trabalho final fortalecesse o personagem da Violet. Por isso, Taichi Ishidate decidiu adaptar a novel em um formato episódico para TV que fosse cronológico. O diretor fez consultas constantes com Reiko Yoshida, conhecida por trabalhos notáveis em composição de séries e roteiros, para reestruturar a obra. Ainda assim, a decisão de Ishidate falhou e comprometeu a direção do anime. O formato televisivo não é adequado para a adaptação dos contos episódios de Violet Evergarden, impedindo a série de alcançar o potencial que poderia.

Apesar do prestígio de ter vencido o grande prêmio da Kyoto Animation, pouco do material original de Violet Evergarden foi utilizado na construção do anime até o momento – Embora, tal qual já expliquei no texto anterior, a série mantenha a essência da light novel em sua estrutura episódica e na utilização do prisma violeta -, isso pois a primeira decisão criativa envolvendo a adaptação é de que ela deveria ser focada na jornada da Violet. Ishidate queria que pudéssemos acompanhar o crescimento da Violet de forma mais próxima e gradual, que pudéssemos partilhar de sua ingenuidade e inocência infantis. Eu imagino que tomar essa decisão gerou um grande comprometimento para o Ishidate em relação a produção da série. Ele teria que desenvolver uma construção de personagem para a Violet nas lacunas temporais da light novel e estabelecer uma cronologia que criasse uma ponte forte entre sua visão pessoal e o trabalho original. Talvez isso até fosse possível, mas existe um problema que torna isso excessivamente difícil: Violet Evergarden é uma série produzida para formato televisivo que tem apenas uma temporada  de anime confirmada. Em 13 ou 14 episódios a série teria que não só construir bem o desenvolvimento gradual de Violet, mas também adaptar bem os capítulos originais da light novel. Essa escolha por si só, já elimina a possibilidade de que adaptem todos os capítulos da light novel e que a narrativa seja fidedigna a original.

O maior problema de Violet Evergarden são suas limitações em relação ao tempo. A maior parte dos contos desta história são curtos, portanto, não tem cabimento para alguns ser contado em duas partes por não haver um bom ponto de parada. Isso é um fruto da natureza episódica do trabalho original e motivo pelo qual todo episódio se inicia uma nova história. Todo episódio tem que ter um início, desenvolvimento e conclusão. O que faz com que algumas histórias, mesmo com uma boa premissa, se desenrolem rápido demais e seja mais difícil estabelecer um bom ritmo de passagem de tempo através da composição de cenas. Por exemplo, no terceiro episódio, é fácil ter a impressão de que tudo ocorreu em apenas alguns dias, quando na verdade o roteiro nos diz que o episódio como um todo se passou no decorrer de algumas semanas. Essa ambiguidade gera equívocos em relação a maneira como as pessoas interpretam as capacidades do personagem da Violet e seu crescimento que deveria ser gradual se torna forçado para alguns.

Há também problemas na composição da série de maneira geral, pois a transição entre um episódio e outro gera lacunas que fogem à proposta e visão do Ishidate. O momento mais claro disso é a diferença entre a capacidade da Violet de compreensão e escrita no quarto episódio em relação a esses aspectos dela mesma no quinto episódio, além do próprio fato de que ela recebeu uma tarefa tão importante do Hodgins em primeiro lugar. No quarto episódio Violet está escrevendo cartas de pedidos de desculpas para uma colega de profissão que supervisionou seu progresso, no quinto episódio ela está indo trabalhar sozinha em um país diferente com a obrigação de fazer um bom trabalho para evitar gerar ânimos que poderiam levar a uma guerra. O desenvolvimento gradual da personagem foi largado e ela claramente passou por um progresso fora dos olhos do espectador que tornou ela uma pessoa e profissional muito melhor. Este também é um problema gerado por tempo, por que a Reiko Yoshida se vê obrigada a gerar espaço tanto para a vontade do Ishidate de acompanhar o crescimento de Violet quanto para a essência do trabalho original da Kana Akatsuki de abordar o crescimento de um personagem que enxerga uma nova perspectiva através da Violet. Enquanto a personagem estiver tanto em foco, ela vai tirar parte do impacto das histórias que poderiam ser contadas. Em contrapartida, caso seguissem o caminho da novel e utilizassem a Violet mais como ferramenta, a visão do Ishidate nunca seria realizada.

Apesar do exemplo, esse salto temporal e a pequena quebra de proposta não impediram o quinto episódio de Violet Evergarden de ser excelente. Ele foi de longe o melhor até agora em todos os sentidos. A combinação de Reiko Yoshida e Naoko Yamada prova a que veio e a direção de episódio de Haruka Fujita permite um bom resultado para esse encontro devido às inspirações da mesma no trabalho da Yamada. Todos os aspectos importantes da produção conversaram um com o outro e se encaixaram bem. O roteiro deste episódio também se superou e me lembrou bastante os tipos de histórias que li na light novel através da sua exploração do amor em suas diferentes formas. Especialmente, o amor fraternal, o sentimento puro de carinho e como ele se dá de formas diferentes e sutis. O relacionamento de Charlotte e Alberta é muito bondoso, apesar da seriedade e da formalidade que cerca o papel das duas e é edificante o respeito que uma tem pela outra.

 



É uma pena para mim, no entanto, que eu não possa dizer o mesmo do sexto episódio e do primeiro a ser um capítulo adaptado da light novel em sua “totalidade”. Não é um episódio ruim, mas ele também não é nem de longe tão bom quanto poderia ser. Porém, devo confessar que talvez a minha visão seja influenciada pelo fato de que eu consumi o material original, pois vi que esse episódio agradou muitas pessoas.

Existe outra transição esquisita do quinto episódio para o sexto. O episódio anterior terminou com um cliffhanger e o sexto não deu continuidade a isto de forma direta. Houveram alusões aos efeitos do encontro de Dietfriet e Violet durante o episódio, porém, eles optaram deliberadamente por deixar os espectadores no escuro em relação ao que aconteceu. Aliás, alguns já notaram que a Kyoto Animation faz isso toda vez que o assunto envolve o estado atual do Major Gilbert. Eles fizeram o mesmo com a reação do Hodgins a citação do personagem lá no episódio 2 que até o momento não foi trazida à tona novamente. A falta de resolução para essa questão acaba sendo anti-climática, especialmente por causa das possíveis implicâncias que o flashback do quinto episódio tem para o passado da Violet e por que todos tem esperado entender melhor por que essa personagem é do jeito que ela é. E vejam bem, havia omissão de algumas informações e contexto dentro da light novel também, só que isso se dava de forma mais natural por que os contos não eram cronológicos e a natureza misteriosa e instigante de Violet é mais bem construída por causa da ausência de foco na personagem dela. A caracterização de Violet se torna mais forte através da percepção que temos dela do que da vivência dela propriamente dita. Esse é o tipo de abordagem que não funciona em uma narrativa simples e comum, por que parece barato omitir este informação do espectador em uma linha cronológica.

Existe uma pergunta que eu não consigo encontrar nenhuma resposta plausível. Por que decidiram mudar a aparência original do Leon?

“Olhos de amêndoa inquietos podiam ser vistos detrás de seus óculos de aro fino. Suas feições faciais ainda em desenvolvimento indicavam que ele estava no meio da adolescência. Seu cabelo era de uma rara cor verde-mar e sua pele, que era da mesma tonalidade com a qual ele havia nascido e não uma consequência de ter sido queimado pelo sol, era de um belo marrom.”

Mas que diabos, Kyoto Animation? A paleta de cor do Leon pode até ser um pouco mais escura, mas ele é claramente branco no anime. Que dizer dos olhos castanhos que se tornaram azuis ainda por cima? A única mudança compreensível é o cabelo do Leon. Isso pois dada as limitações de tempo e as decisões de produção de Violet Evergarden, eles optaram por não explorar a fundo às circunstâncias ao redor do Leon. Além, é claro, de deixar o anime mais realista por não utilizar tons de cabelo espalhafatosos, mas porra, qual é a justificativa para mudar o tom de pele?

De qualquer forma, o cabelo verde do Leon é uma herança hereditária de sua mãe que era uma viajante cigana. No mundo de Violet, algumas raças são diferenciadas por cores de cabelo que não vemos no nosso mundo. Existe um peso interessante na aparência do Leon por dois motivos. Primeiro porque ele é ostracizado no instituto astronômico por causa de suas origens, em uma clara alusão ao racismo. Segundo porque é um lembrete do amor que Leon um dia recebeu da mãe e tudo que envolva ela, também é um lembrete constante de sua rejeição desse mesmo amor. A maneira como essas questões são interligadas torna o Leon um personagem mais interessante e complexo. A maneira que Leon encontrou de lidar com seu sentimento de solidão e seu deslocamento social foi adotar um comportamento misógino. Ele reflete a rejeição que sofreu em um outro grupo de pessoas, retribuindo o que lhe foi pago na mesma moeda, diminuindo e odiando mulheres. Esse sentimento é representado no episódio até certo ponto, mas eles diminuem bastante esse ímpeto do Leon. Na novel ele não utiliza meias palavras para dizer que acha que as Dolls são prostitutas e seu descontentamento com a situação para os colegas de trabalho. Age com um mínimo de cortesia com Violet, mas tenta diminuir ela através de sua noção de superioridade imatura.

A dinâmica entre Violet e Leon se torna mais interessante sob essa ótica, por que a mera presença da Violet faz com que ele tenha que confrontar diversos de seus próprios preconceitos. Primeiro, ele se vê claramente atraído pela beleza de Violet. Depois ele é obrigado a aceitar que ela é uma trabalhadora extremamente competente. E por fim, enxergando que a Violet é um ser humano tal qual ele, com suas próprias peculiaridades. A paixão de Leon faz ele se tornar uma pessoa melhor e esse é um processo de evolução que é muito legal que ocorre de forma bem natural.

A cena em que os três astrônomos fanfarrões dão em cima de Violet trabalham todos esses aspectos de preconceito do personagem do Leon muito bem. Evidenciado não só o que ele passa, mas também fazendo ele se dar conta do que faz. E isso evidencia pra mim um problema tanto de foco quanto de tempo do diretor Taichi Ishidate. De foco por ter alterado um ponto simples que acrescentaria mais camadas ao episódio e de tempo por ter tomado todas as decisões que impediram que esse episódio tivesse tempo o suficiente para trabalhar os problemas do personagem do Leon e do passado dele. O episódio em si, tem cenas de resolução de conflitos muito boas, só que o impacto que essas cenas poderia ser muito maior se o trabalho de adaptação tivesse sido melhor. É bem claro que essas pequenas histórias precisavam de mais tempo para respirar e se desenvolver e infelizmente, isso é impossível diante da direção do trabalho do Ishidate e do formato televisivo. Quem sabe se a adaptação tivesse sido feito em OVAs e as histórias pudessem ter tido mais tempo poderia ter ficado ainda melhor? Sei que não adianta sequer pensar nisso, a gente vive no presente e é com amargura que devo dizer que já não espero muito da adaptação de Violet Evergarden. 

Por fim, foram cortados do anime dois momentos importantes envolvendo Violet e Leon. Um é que durante a despedida entre os dois, Leon finalmente encontra em si um lugar para parar de rejeitar o mundo e decide não perder a oportunidade, se declarando para Violet. Ele o faz mesmo com muito medo de ser rejeitado novamente, só que dessa vez ele entende melhor o peso dessas ações e os sentimentos das pessoas, devido ao processo transformativo que ele mesmo passou. Violet rejeita ele, obviamente, ela não sente que quer estar com Leon dessa forma, mas ela também sabe que ela não entende esses sentimentos e que ainda lhe falta muita experiência, porém isso não muda o fato de que ela deseja encontrar ele novamente e que pela primeira vez ela se sente muito feliz. No misto de emoções que Leon sente, é aí que ele se dá conta que o que ele quer é ser como a Violet, é ser como a mãe dele e o pai dele. É ter a liberdade de ir e vir por lugares desconhecidos e novos e de ter esses encontros, de ser um cigano. Leon convida Violet então, para que no futuro, em uma terra distante, em um lugar desconhecido, caso se encontrarem novamente, que ela possa fazê-lo companhia ao observar as estrelas uma outra vez. E esse foi o segundo momento removido, que talvez aconteça no anime no futuro, mas acho improvável por que ele funciona melhor como a resolução para a história do Leon e ela já acabou neste sexto episódio.

Violet Evergarden é um produto de seu meio, ele não poderia ser de outra forma por causa das decisões que foram tomadas que nos trouxeram até o episódio atual. O que é uma pena, pois mesmo que esteja bom, estamos perdendo metade da história. Não existem soluções que vão consertar esse começo e é possível que esses erros se repitam. Mas mesmo sem esperanças, ainda irei torcer para que Violet possa sorrir genuinamente que nem quando recebeu sua segunda declaração de amor e que a segunda metade de seu cour seja melhor que a primeira.

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