Violet Evergarden: O prisma Violeta

 

Às vezes eu acho a adaptação de Violet Evergarden questionável. Tal qual eu falei anteriormente, cada mídia tem suas próprias vantagens. Porém, não consigo compreender algumas mudanças. E não me entendam mal, o roteiro do anime está bom. No momento não tão bom quanto sua contraparte, mas quem sabe no futuro? O problema é que a escrita da light novel é excepcional e por isso se torna impactante. Enquanto o anime tem deixado de lado ou adiado alguns pontos do roteiro em favor de uma construção mais lenta. Eu torço para ser surpreendido. O segundo episódio só teve uma cena tirada do material original. Ainda assim, isso não quer dizer que não existam influências da light novel no trabalho da Kyoto Animation. Esse episódio foi muito bom em manter a caracterização dos personagens e temas através de uma história própria.

A cena inicial retrata o momento em que Dietfried entrega Violet para Gilbert. Uma pequena diferença é a ausência dos companheiros de Dietfried. Na light novel ele está rodeado de companheiros em uma reunião privada regada a cigarros e bebidas. Esse detalhe pode não parecer muito, mas acredito que ele dita o tom da atmosfera do momento e compõe o retrato do personagem recém apresentado. Há calor e uma euforia imprudente, quase adolescente na reunião e na maneira como Dietfried age. Ele é um militar de alta patente da Marinha e segue um estilo de vida oposto ao de Gilbert, que pertence às forças armadas.

Nem tudo se perde, no entanto. O primeiro diálogo estabelece qual dos irmãos seguiu os passos do pai e qual seguiu um caminho “reprovável”. Os visuais fazem um bom trabalho em apresentar visualmente as distinções entre os dois. Gilbert veste um uniforme muito mais rígido e aplicado a um código de conduta e etiqueta. Dietfried se veste de forma mais largada. Ele deixa botões de sua blusa social desabotoados, não utiliza o terno militar da Marinha e anda com o colarinho desajustado.

Gosto também da expressividade de Gilbert quando ele vê o que tem dentro do outro cômodo. Daí vem a segunda alteração que traz alguns questionamentos. Dietfried diz que encontrou Violet na fronteira nordestina e que o nome dela é… Trocam de cena e a própria Violet recita seu nome. Uma coisa já sabemos, o nome Evergarden ela não possuía antes. Espero, no entanto, que Dietfried não tenha nomeado a garota. Dietfried tem seus motivos para enxergar Violet como uma arma, ele não trata a personagem como um ser humano. Na verdade, na light novel é justamente por isso que ele não se dá ao trabalho de nomear a garota. Esse detalhe potencialmente descaracteriza e altera o personagem de Dietfried e fica pro futuro a possibilidade de outras consequências.

Existe uma certa maneira que a light novel aborda seus capítulos. A narrativa sempre começa acompanhando um ponto de vista externo ao de Violet. A personagem ocupa uma posição quase etérea. Existe uma fragilidade na forma como ela é retratada e uma naturalidade construída na sua forma de agir e afetar os outros. Sua caracterização percorre uma linha tênue entre a humanização e o divino. Nós não temos compreensão do que Violet de fato pensa, somos colocado na posição de observadores. Tal qual os personagens com quem ela interage. Distanciados de Violet, quando ela se torna o ponto de foco ocorre uma mudança na perspectiva do observador. Isso é o que um membro da produção denominou de prisma violeta, por onde você olha e enxerga as coisas através da maneira como se assume que Violet perceba o mundo a seu redor. É assim que alguns personagens são capazes de crescer nesta história e através dessa interação, Violet está evoluindo, mas nunca de forma explícita. É uma abordagem diferente de narrativa que traz consigo uma certa ambiguidade e uma estrutura incomum.

Parte deste molde se perde durante a adaptação, mas é notável nesse segundo episódio que querem manter o prisma violeta como a essência da adaptação. O centro deste episódio e a perspectiva do observador recai sobre Erica. Ela já é uma experiente amanuense cuja insegurança faz sentir inadequação. A personagem se torna então um reflexo de Violet e seus sentimentos autodepreciativos são demonstrados através das ações socialmente desajeitadas de Violet. A direção trabalha esses paralelos de forma bem direta, tanto através do monólogo interno de Erica, quanto através composição de cena quando Erica deixa o centro para os cantos e Violet assume o seu lugar. Enquanto uma tem a capacidade de se expressar e não consegue impor, a outra que não entende a nuanças da vida social não tem medo das pessoas. O trabalho de Haruka Fujita neste episódio é magnífico e trouxe à tona os pontos fortes do roteiro original através de sua atenção a detalhes. Foram essas escolhas que me deixaram investido nas ações de Erica no final do episódio. Defender Violet foi o mesmo que defender a si mesma para Erica. E sua demonstração de força se torna acreditável e impactante pela identificação dela com Violet.

 

 

A conclusão de Erica que me traz algumas dúvidas. Não por causa do sonho dela nem nada assim, mas porque a história do Professor Orlando é mais contextualizada em um outro momento. Na verdade, o primeiro capítulo da primeira novela é que acaba definindo o conceito de bonecas de auto-memórias. Tal como dito no anime, a esposa do professor Orlando, Molly, era uma novelista que perdeu a vista. Molly acabou por cair em depressão por não ser mais capaz de escrever e ficou fraca e doente. O professor Orlando incapaz de vê-la daquele jeito, criou a primeira boneca de auto-memórias. Não era um andróide ou um robô humanóide como algumas pessoas tendem a pensar. Era simplesmente uma boneca mecânica, tal qual a mostrado na vitrine de uma loja no anime. A boneca tem a capacidade de transcrever a voz humana em uma máquina de escrever, servindo o papel de uma amanuense. A história fez tanto sucesso que o nome da invenção do professor Orlando tomou o nome da profissão amanuense por ter se popularizado mais. Apesar da fama, a invenção não é acessível e requer um investimento monetário muito alto, razão pela qual as amanuenses ainda existem como bonecas de auto-memórias. Como esse background fazia parte de um outro contexto, não sei se irão adaptar o primeiro capítulo da light novel. Isso seria até melhor, na verdade, por que o primeiro capítulo é mais introspectivo e expositivo.

O segundo episódio também faz um excelente trabalho de caracterizar melhor todos os personagens apresentados até agora. O fato de que Violet nunca come na frente de alguém é um exemplo disso. Foi mostrado no episódio passado e mostrado de novo neste. É um hábito de Violet que é um reflexo de uma insegurança dela e não um esforço para concluir um dever. As tentativas de descobrir ou sentir as coisas através da boca e do paladar são um outro exemplo por demonstrarem uma infantilidade e ingenuidade da personagem em relação ao mundo. A diferença entre a maneira como Violet cuida dos bichos de pelúcia e a maneira como Hodgins cuida deles. O relacionamento casual e amigável entre Hodgins e Cattleya. A incerteza de Cattleya em relação ao que fazer quanto a Violet e sua falta de atenção para com os companheiros embora aparente sempre estar tentando cuidar deles. Os dedos marcados e machucados da cliente rica que indicam que ela escreveu muitas cartas. As botas de Benedict inspiradas em moda francesa vitoriana. E por fim, a mudança do personagem de Benedict. Ele continua tentando ser um bom-vivã, tal como na história original, mas pelo menos ele falha. Isso gera uma dinâmica mais interessante pro personagem do que na light novel, onde ele parece conseguir facilmente tudo que ele quer e é rodeado de mulheres onde quer que vá.

Um dos problemas da light novel é que há um forte apego ao poético e ao visual. Existe um excesso de descrições e beleza na prosa de Kana que para alguns vai além do necessário e a transforma na fadada “prosa púrpura”. Particularmente, eu discordo desta afirmação. A escrita está sim envolta nessa estética, mas ela nunca deixa de ser coesa com as descrições ou com a história. Há alguns detalhes que talvez não fossem tão importantes e esse excesso cria algumas repetições, só não é nada que seja tão problemático quanto casos verdadeiros de prosa púrpura. Problemático para mim é que isso influencia outros aspectos. Como quando a obra passa a impressão de que alguns personagens são mais “perfeitos” do que deveriam. É o caso de Benedict, então sua mudança é muito bem-vinda, por mais que seja um detalhe pequeno.

Algo não gostei no episódio foi a Iris. Ela é uma personagem original feita para acrescentar mais ao ambiente da agência de correios. Só que ela não foi nada além de uma ferramenta de roteiro no arco da Erica. Ela é uma funcionária nova que antagoniza Violet por seu comportamento. Mesmo já sendo superada pela diligência de Violet no trabalho apesar de executar as mesmas tarefas que ela. Iris age de forma imatura e infantil ao ir reclamar com Hodgins. Me parece ainda mais sem sentido que ela sinta a liberdade de confrontar o chefe dela a respeito da direção que ele está levando a empresa dele.

O conflito gerado pelas ações de Iris é um pouco forçado. Acredito que poderia haver outra forma de gerar uma resolução para os medos de Erica. Poderiam ter utilizado um dos clientes para reclamar do trabalho de Violet diretamente para Hodgins. Seria até mais condizente como consequência dos erros que ela comete durante o episódio. E então Iris iria não só defender Violet, mas também se impor sobre uma pessoa que ela não conhece.

A cena final do episódio é a que mais me faz questionar o caminho por onde eles estão indo. Talvez aqui seja o ponto de divergência onde uma mídia irá se diferenciar da outra. Ou talvez a Kyoto Animation só tenha decidido pegar uma estrada diferente para chegar no mesmo destino. A questão levantada por Hodgins no final do episódio sobre o Major Gilbert e o fato de que Violet desconhece a verdade é algo que teoricamente já deveria ter se resolvido. Isso se tivessem adaptado o capítulo 8 de maneira fidedigna. Fico curioso pelo rumo que estão tomando. Por um lado podem simplesmente estender a construção do arco deste capítulo para fortalecer o personagem da Violet. Por outro lado sinto que eles podem seguir um caminho completamente diferente da light novel e se basear somente na premissa enquanto criam muito mais material próprio deles. Apesar disso, o segundo episódio cria uma base mais confiável e forte para mim do que o primeiro. Embora seja diferente, o anime mantém a essência de Violet Evergarden.

 

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