O Mercado do Mangá, os Scans e a Pirataria


A editora JBC notificou nesta semana um grande scanlator brasileiro, exigindo a retirada dos mangás sobre os quais a empresa possui os direitos de publicação no Brasil do site em questão. Houve reação em redes sociais, posts em blogs e páginas de Facebook e alguns comentários me soaram tão ilógicos, que motivaram a escrever sobre os scans e a pirataria, que são de certa forma, uma faceta do mercado do mangá. Tentarei apresentar argumentos e análise, à medida do possível, objetiva, explicando meus raciocínios sobre essa relação da pirataria e o mercado brasileiro conforme os desenvolvo.

Este não é um texto para demonizar os scans ou fansubs, eles prestam um inegável serviço de divulgação das mídias e principalmente das obras, entretanto, é inquestionável o direito de uma empresa detentora da licença sobre uma obra de querer que ela não seja disponibilizada sem sua autorização.
O que pesa mais, o ganho em publicidade com possível perda de consumo ou a perda de publicidade, mas com possível aumento de consumo? Não é possível saber, pois as empresas não divulgam números de vendas no Brasil. Ao que se tem notícia, atitudes contra este tipo de pirataria não tiveram grande influência em outros casos. Mas as editoras estão em seu direito e é até infantil tentar argumentar em contrário. É simples lidar com a situação e, por que não, conviver com as empresas que licenciam oficialmente os mangás e animes que tanto gostamos. Essas empresas não são malvadas querendo acabar com as tuas possibilidades de consumir mangá de graça, elas, ao contrário, costumam até ter bom senso, assim como muitos scanlators.
Existem diferentes possibilidades do scan “trabalhar”, como tirar do ar produtos licenciados oficialmente (houve um tempo em que grande parte funcionava assim), deixar no ar apenas capítulos iniciais dos licenciados, traduzir apenas “simultaneamente” ao lançamento dos capítulos no Japão e ir tirando do ar simultaneamente ao lançamento no Brasil, traduzir tudo e deixar tudo disponível licenciados ou não, deixar disponível gratuitamente ou mediante pagamento…
Não é difícil concluir quais formas as editoras poderiam considerar inofensivas ou até interessantes para elas. Porque SIM, insisto que as editoras na maioria das vezes têm bom senso e SÃO conscientes de que até certo ponto as iniciativas de fãs funcionam como publicidade para os mangás que elas vendem e até como um dos fatores de análise para quais títulos licenciar. Cabe só a elas avaliar a partir de que ponto isso passa a ser nocivo para seus negócios (eu… ACHO que foi no ponto “scans com publicidade ou cobrando assinatura”… Pura especulação). E elas podem sim, inclusive, não gostar de nenhuma das formas e pedir para tirarem  do catálogo online todos os títulos sobre os quais têm direitos. Podem até pedir para tirar as imagens deste post se quiserem.

Entrando no caso específico “JBC x Mangás Project”, primeiramente, achei que a postura do site em relação ao caso foi bastante razoável: Notificados extra-judicialmente, tiraram do ar o conteúdo e colocaram nota explicativa ao seu público consumidor no próprio site. Depois, através de seu advogado, o scanlator divulgou Nota Oficial (link para nota na íntegra no fim do post), a qual começa detalhando um pouco mais a situação, dizendo que tentava dialogar com a detentora dos direitos de publicação no Brasil (JBC) para saber quais seriam exatamente os títulos a serem removidos e coisas assim. Além de dizer que o grupo não tem inimizade com a editora, que são apaixonados pelos mangás tentando divulgar a cultura e que entende o lado da empresa. Novamente, nenhum reparo a fazer, até este ponto (até o tópico 5 da nota), embora soe um pouco forçado. Na sequência, no entanto, passo a ter sérias restrições ao conteúdo da nota: “6. O “passe Vip” que nosso site oferece em nada tem relação com o conteúdo. O conteúdo do site é e sempre foi livre, disponível para todo mundo de forma gratuita. O “Passe Vip” não se trata de uma cobrança, e sim uma interface personalizada retribuída como privilégio a aqueles que deram suporte ao site com doações. “. Me parece uma visão muito distorcida do que acontece, pois a “interface comum” consiste em um site cheio de anúncios publicitários, cuja exibição é um meio para o site levantar fundos. Estes anúncios podem ser evitados transferindo dinheiro diretamente para o scanlator, o que dá acesso ao “Passe Vip”. Por mais que site e advogado argumentem que não se trata de cobrança, há uma relação claramente comercial: Pague uma quantia pré-determinada de X Reais e ganhe acesso Vip por A tempo, pague Y Reais e seja Vip por B tempo. Com direito a promoção na Black Friday. A lógica é basicamente mesma da relação que tenho com o Crunchyroll, uma plataforma oficial que proporciona a qualquer um assistir animes, sendo duas as formas possíveis: Gratuita com publicidade e lançamento posterior, ou com assinatura Premium, paga, que me permite assistir sem publicidade e imediatamente no momento do lançamento.

Diz-se que o dinheiro “arrecadado” é destinado à manutenção do site, o que não teria propriedade para questionar, já que não tenho acesso às despesas que o mesmo gera. Mas posso fazer um exercício de análise comparativa para tentar estabelecer uma relação. É um exercício bobo e vou usar como parâmetro o Crunchyroll, por causa da relação parecida. Vamos lá: O scanlator precisa de um servidor para armazenar milhares de capítulos de mangás. O Crunchyroll precisa de um servidor para armazenar milhares de episódios de animes. O scanlator terá despesas com desenvolvimento, manutenção e aprimoramento de site, servidor, aplicativos e afins; O Crunchyroll terá despesas com desenvolvimento, manutenção e aprimoramento do site, servidor, aplicativos e afins, sendo eles mais numerosos pois está disponível em videogames e smart tvs, além da maior complexidade do vídeo em relação à imagem estática. O scanlator não tem despesas com pessoal, já que é um trabalho de fã para fã; O Crunchyroll tem despesas com pessoal, já que pagam pessoas para trabalhar com tradução, marketing, redação e outras funções mais. O scanlator teoricamente não visa lucro; O Crunchyroll teoricamente visa lucro. Eu não tenho os números, mas aparentemente, a conta não bate.

Ainda sobre doação ou assinatura: Não sou hipócrita, consumo scanlation e fansub também. Abri uns 10 sites que eventualmente acesso para baixar anime e mangá enquanto escrevia o texto pra conferir, pois a poluição visual de publicidade é tão comum que eu às vezes abstraio, mas passei por ShaKaw, Eternal, OW, Moshi Moshi, entre outros e só um tem publicidade. Nenhum tem um sistema de “doação” atrelado a um benefício VIP que interfira na experiência de consumir as obras de seus catálogos. A maioria exibe qual é a meta de doação (de R$100,00 a R$250,00/mês), alguns inclusive especificando referente ao que é aquele valor. Não tenho dúvidas de que a Manga Project pelo tamanho que atingiu precisa de uma estrutura muito mais robusta, mas também é verdade que com um público muito maior e que poderia contribuir para atingir metas mais elevadas, o faria sem maiores problemas.

Nunca fui VIP na Mangas Project, nunca havia tentado ler nada online lá até agora e apesar das publicidades terem praticamente o tamanho da página do mangá, pelo menos é simples. Espero que os VIPS tenham também, um pouquinho menos de burocracia e barreiras para chegar ao conteúdo grátis disponível para todas as pessoas, porque são tantas etapas para fazer o download de qualquer arquivo da Aliança Project que seria muito mais rápido os jovens de hoje em dia aprenderem a usar o IRC. Não consegui baixar nada da Mangas Project enquanto escrevia porque os links passavam mensagem de “em manutenção”, mas na Piece Project ainda parece mesmo sistema de clique em link “direto”, aguarde um minuto olhando essas publicidades tão desinteressantes quanto possível, localize o código, digite, marque que não é robô, ache o botão download no meio de várias baits que levam a mais publicidade… E vejam, aqui estou dizendo que é bem chato, mas não acho que se deva reclamar, eles não têm obrigação de entregar um link realmente direto para um arquivo hospedado no servidor deles. Mas há opções gratuitas que não implicam em ficar assistindo publicidade enquanto aguarda uma contagem regressiva também.
Guardem esse desgosto, vou retomar mais tarde ao criticar “o outro lado”, mas para fechar sobre o scanlator, e aqui é até mais sobre o público do que sobre ele em si: Eles estão errados em cobrar pelo acesso Vip. E sobre a publicidade. Mesmo sobre disponibilizar conteúdo sobre o qual não possuem os direitos de publicação, mesmo que ninguém mais os possua no Brasil. E vale o mesmo para qualquer outro scanlator ou para qualquer fansub, isso é ilegal, pois seria necessária autorização dos detentores dos direitos autorais para tal. A questão é: Alguém pode te acionar judicial ou extra-judicialmente por estar colocando para download ou leitura no teu site daquele mangá que ninguém detém os direitos aqui no Brasil? Sim, a detentora dos direitos autorais pode, mesmo estando no Japão, sem presença de escritório, empresa ou filial no Brasil. E isso vai acontecer? Não, tu não vai receber uma cartinha assinada pelo Akira Toriyama e o advogado dele pedindo pra tirar Nekomajin do site, porque eles têm mais com o que se preocupar. Agora, se for o Fullmetal Alchemist, os direitos do mangá no Brasil estão vinculados à JBC, então as chances da detentora te acionar são muito maiores, já que ela pode considerar que isso impacta seus negócios negativamente. Simples assim. Ainda por cima, a exibição de publicidade e principalmente a questão do Vip, que penso ter ficado claro ser comercial, dá embasamento material, mensurável e uma segurança jurídica enorme à editora para se quiser, inclusive uma indenização para reparo de danos materiais já que estão ganhando dinheiro em cima de produtos dela (e aqui não importaria para qual fim é destinado o dinheiro). Ainda acho no mínimo curioso que a Aliança Project através do seu advogado procure saber sobre quais mangás a editora possui “exclusividade dos direitos de distribuição digital”, dando a entender que planejam disponibilizar novamente os que por ventura estejam apenas com direitos de distribuição em papel vinculados à JBC. Esta linha de raciocínio soa muito estranha, como se a Mangás Project tivesse uma licença para publicar digitalmente os títulos “não exclusivos” da JBC neste formato.

Agora vou atacar “o outro lado”. Não conheço um scanlator ou site para leitura online de mangás não oficial que seja bom. Como já coloquei, não uso o Mangás Project, mas cliquei para ler online pelo PC o último capítulo de One Piece disponível e me pareceu a melhor ferramenta não oficial, único incômodo pareceram as propagandas, que eu poderia pagar para tirar. Achei bem razoável, mas não explorei a ferramenta. Se optarmos por download, a experiência fica bem pior, como descrevi acima. Há uma demanda por leitura digital, mas não há uma plataforma oficial (até tem o Crunchyroll mangá, mas este só disponibiliza títulos em língua inglesa) ou uma BOA plataforma “extra-oficial” (talvez a versão paga da Mangás Project, não sei).
E aí eu questiono as empresas que possuem os direitos de publicação no Brasil: Onde está a alternativa para ler os materiais digitalmente? A JBC anunciou uma iniciativa neste sentido em abril de 2016, manifestando a intenção de poder ampliar o leque de títulos e também disponibilizar a opção digital para títulos publicados em papel, sempre com ressalvas quanto a complexidade das negociações com os japoneses e, que eu me lembre, sem mencionar uma previsão de lançamento. Chegou a abrir inscrições para um Closed Beta, mas desde então, pouco foi divulgado.
Também não encontrei ninguém que tenha sido contemplado com esta versão de testes ou se ela já ocorreu. E esta é, dentro do mercado brasileiro, a iniciativa mais palpável. Crunchyroll ainda não tem previsão de mangás em português, Panini e NewPop não expuseram planos de ingresso no mercado digital de mangás, embora não rechacem a possibilidade para o futuro. Sei que as negociações de títulos não são tão simples quanto pedir para a editora japonesa para publicar o título X no Brasil, pagar o preço do licenciamento e lançar.
Mas a demanda por leitura digital me parece já ser tão grande e ainda seguir crescendo (não tenho dados, apenas parto do princípio que a inclusão digital é cada vez maior, e que temos cada vez mais leitores plenamente habituados à leitura através de meio digital), isso me parece tão grande, sólido, e sem um atendimento capaz de sanar a demanda que não consigo entender como ainda não temos um mercado em afirmação. É um cenário muito parecido com o que tínhamos há alguns anos com filmes, séries, música e o mais importante, um filão que é muitíssimo relacionado ao dos mangás: o dos animes. Não apenas o Netflix e o Spotify estão aí. O Crunchyroll está aí, ao que tudo indica, se afirmando e crescendo.

Me parece claro que com o ingresso no mercado digital, as editoras de mangás do Brasil teriam alguns ganhos expressivos: Custos mais baixos para publicação de títulos, podendo colocar alguns novos inicialmente apenas no digital. Os direitos de publicação digitais são mais baratos que em papel? Não sei, mas não há custo com gráfica e com os vilões dos últimos 2 anos: A crise do papel e o monopólio da distribuição com serviço caro de qualidade questionável (este segundo não só dos últimos anos). É possível pescar aqui e ali em palestras, vídeos ou declarações em redes sociais de editores que no Brasil, para se publicar em banca o preço dos mangás aumenta por volta de 50% (varia de título para título e estou usando um valor percentual baixo pelo que já ouvi), em função do valor cobrado pela distribuidora. Uma alternativa que as editoras criaram foi a de títulos exclusivos para livrarias e lojas especializadas (a NewPop tomou inclusive a iniciativa mais agressiva de vender exclusivamente neste tipo de ponto de venda). Além disso, acho que já é, e tenho certeza de que cada vez mais será, mais fácil angariar novos leitores por meio de uma plataforma digital do que através das bancas, por exemplo! Ou melhor: Novos consumidores, pois novos leitores os scanlators já conquistam. Se o passo seguinte, passar a comprar (ou assinar, ou alugar, não sei quais seriam os formatos possíveis de serem adotados), estiver a poucos cliques…
Lançar os mangás em formato digital não será tão simples quanto colocar um site de scanlation no ar, evidentemente. É preciso um cuidado muito maior com os títulos, com a plataforma, com o serviço, ter estrutura adequada. E isso tudo tem custo. Mas dá pra fazer! Exemplos semelhantes estão por aí aos montes! E o Brasil tem particularidades que incentivam esta iniciativa, temos dimensão territorial enorme com logística complicada para distribuição física, não há como nos EUA uma pressão forte dos lojistas fazendo lóbi para que o digital não tenha preço muito diferente do físico. É a visão de um consumidor bastante interessado, mas só vejo o ingresso neste mercado de forma digital dando errado com erros muito graves.

Acho que era só isso que eu tinha a dizer. Espero gente mais consciente traduzindo realmente só de fã para fã. Espero ter que ler menos mimimi sem sentido de leitor de scan (tá, estou muito otimista). E espero ter em breve uma plataforma que possa utilizar para consumir mangá digital como já faço com Netflix, Crunchyroll e Spotify. O futuro é a internet. Dizem…

Nota Oficial da Aliança Project, através de seu advogado, Maurício Moschen

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