Um papo sobre o mercado brasileiro de tradução com Fernando Mucioli

Trabalhar com anime e mangás no Brasil é difícil, são poucas as opções disponíveis no mercado que não são relacionadas a “vou fazer um site/blog para falar disso”. E dentre dessas opções, uma das mais conhecidas é a área de traduções, já que ela tem uma ligação mais forte com a obra. Todos nós que entramos em contato com essas mídias sentimos bastante interesse nesse mercado. E é sobre isso que nós do Quadro X Quadro conversamos sobre com o Fernando Mucioli, que trabalha com tradução tanto de mangas quanto de animes para várias editoras e no Crunchyroll.

Quadro X Quadro – Antes de tudo, se apresente e fale um pouco do seu trabalho.

Mucioli – Meu nome é Fernando Sato Mucioli, tenho 33 anos, e trabalho com tradução (principalmente de mangás e animes) há quatro anos. Antes disso, trabalhei como jornalista cobrindo as áreas de tecnologia e games por quase uma década, passando por veículos como Kotaku Brasil, PlayTV e Info.
Também passei algum tempo na organização de eventos da Yamato (Anime Friends), no desenvolvimento de parcerias do Crunchyroll, e uma série de outros projetos.

QxQ – Como você começou a trabalhar profissionalmente com tradução e por que a tradução de obras japonesas?

Mucioli – Traduzir do japonês (e do inglês) sempre fez parte da minha rotina de trabalho como jornalista (eu fui contratado justamente para isso), mas comecei a trabalhar com tradução profissionalmente só no fim de 2013. Eu estava interessado em trocar de área, e surgiu a oportunidade através de uma amiga, que já traduzia para a Panini. Aí eu entrei em contato com a editora, fiz um teste, fui aprovado, e estamos aí até hoje.
Trabalhar com mangá foi a escolha natural pra mim, porque eu sempre gostei muito, e porque a oportunidade surgiu.

QxQ – Como eu posso entrar para esse mercado?

Mucioli – As dicas que eu posso dar pra entrar nesse mercado (e em qualquer outro) são as mesmas: primeiro, saiba o que está fazendo e do que está falando. Você tem que ter o conhecimento, e estar disposto a permitir que ele cresça. Segundo, esteja nos lugares certos para falar com as pessoas certas. Ter contatos é vital – senão, simplesmente não tem como os clientes saberem que você existe. Vá a eventos; converse com pessoas.

QxQ – Qual a maior dificuldade na tradução de obras japonesas? Trabalhar com isso no Brasil traz alguma dificuldade a mais?

Mucioli – A maior dificuldade, pessoalmente, são as piadas e trocadilhos. Você tem que tentar manter o sentido original, ao mesmo tempo que deixar uma tradução engraçada o suficiente. Ditados, por exemplo, nem sempre têm equivalência direta entre japonês e português. Então às vezes a gente tem que sacrificar um dos lados, pra manter o texto fluido e interessante de ler.
Sobre traduzir no Brasil, não sei se há alguma dificuldade específica.

QxQ – Qual o melhor e o pior aspecto de se trabalhar com animes e mangás?

Mucioli – O melhor é trabalhar com algo que gosta, e conhecer obras que talvez você nunca fosse ler normalmente. A pior é que trabalhar com algo que gosta transforma diversão em trabalho. E você também pode pegar um tipo de “raiva” de alguma série, se ela der muito trabalho. Mas isso é algo que eu já conhecia pelo meu trabalho com games.

QxQ – Quais as diferenças de traduzir um mangá e um anime?

Mucioli – O tempo. Mangá você tem um tempo bem maior para trabalhar, mesmo variando de editora para editora. Já o episódio de anime você tem que deixar ele pronto na hora em que chega, porque, principalmente no caso do Crunchyroll, precisa respeitar os horários do Simulcast. Ele tem que ir ao ar naquele horário, e acabou. Não importa se o material chegou 2 dias ou 4 horas antes do limite.

QxQ – Se perde muita coisa na tradução do japonês para o português?

Mucioli – Eu diria que, em tradução, sempre se “perde” alguma coisa – uma tradução não deixa de ser uma versão, e não uma reprodução 100% fiel, do texto original. É natural que coisas vão ficar pelo caminho, pelas próprias características dos idiomas. Eu procuro um equilíbrio entre fidelidade e fluidez de texto – ele precisa ser tão bom de ler quanto um bom texto escrito originalmente em português, mas não pode fugir do sentido original. A adaptação acontece nesse sentido.

QxQ – Na língua japonesa temos muitos honoríficos, como “san”, “sama”, “kun”, “senpai”, dentre outros. No entanto, aqui no Brasil nós não temos o costume de usar eles. Então é comum vermos as traduções utilizarem esses termos como no original por não acharem uma maneira boa de contextualiza-los. Você acha que manter os honoríficos é necessário ou tem um jeito melhor de traduzi-los, mesmo que isto afaste um pouco a tradução do texto original?

Mucioli – O emprego de honoríficos é uma diretriz que vem das editoras, e depende das obras. Umas usam, outras não. Eu não acho estritamente necessários, mas tem obras que se favorecem da presença dele – principalmente as ambientadas no Japão, e que carregam forte o espírito “otaku” da coisa.

QxQ – Temos visto um forte crescimento de light novels vindo para o ocidente. Você enxerga elas dividindo espaço com mangas aqui no Brasil?

Mucioli –
Eu não sei como andam as vendas de light novels, mas a relação do brasileiro com livros sempre foi complicada. Grande parte das pessoas ainda não gosta muito (ou não tem o costume) de ler.

QxQ – Aqui no Brasil temos uma cultura forte de scans. Muitas pessoas acompanham obras semanalmente ou desde seu lançamento antes de uma editora trazer elas oficialmente para o Brasil. Você sente que o público que leu a obra antes chega a ser mais exigente e até mesmo um pouco chato com a tradução oficial, pois passou muito tempo lendo outra tradução que para ele é a certa?

Mucioli – A questão das traduções de mangá em scan (pelo menos as que eu vi), é que elas são feitas do texto em inglês (e não direto do japonês, como as oficiais), e que mesmo o texto em inglês já têm problemas. Já vi coisas tenebrosas em scans de Tokyo Ghoul (série em que eu trabalho) e Boku no Hero Academia, por exemplo. Então, o que eu posso dizer é que, via de regra, a tradução oficial é de melhor qualidade do que a dos scanlators, independente do que parece.

QxQ – O Crunchyroll e a Netflix tornaram o acesso a anime mais acessível por stream. Ainda assim, existe um público enorme no ocidente, principalmente no EUA, que consome obras através de compra da Blu-ray e DVD. No Brasil, não existe uma perspectiva real de armazenamento de anime que não seja pirataria, porque nossas fontes primárias são online. Você  vê alguma possibilidade de empresas buscarem aqui no Brasil um mercado de mídia física mais significativo no futuro?

Mucioli – Novamente, eu não tenho conhecimento de como anda o mercado de mídia física por aqui. Mas a possibilidade sempre existe. A gente precisa enxergar o mercado como um todo, não com mangá e anime como coisas separadas. O crescimento de um impulsiona o do outro. Quanto mais gente assinando serviços de stream e comprando quadrinhos, mais argumentos uma distribuidora tem pra negociar o lançamento de DVD e Blu-ray. A coisa toda anda junta.

QxQComo você vê o mercado de tradução atualmente e como acha que ele vai estar no futuro?

Mucioli – É um mercado bom mas, como qualquer outro, é difícil saber até quando continua assim. Eu, pelo menos, não tenho do que reclamar.

QxQ – Você acha que, a longo prazo, animes e mangás deixarão de ser vistos como uma diversão para você e se tornarão somente trabalho?

Mucioli – Só trabalho, eu acho que não. Talvez se eu trabalhasse criticando as obras, como fiz com videogame. Mas na tradução realmente eu não vejo isso acontecendo.

QxQ – Você pensa em traduzir outra mídia além de animes e mangás?

Fernando Mucioli – Eu já traduzi alguns programas de TV, mas gosto mais de trabalhar com anime e mangá. Eu me interessaria também em trabalhar com videogames, mas ainda não surgiu a oportunidade (ou o tempo pra me dedicar).

QxQ – Que obras você mais gostou de traduzir? E com qual obra você mais gostaria de trabalhar?

Mucioli – Traduzir a série Pokémon Black & White foi uma delícia. Foi a minha primeira, e acabei me apegando bastante aos personagens. Sobre querer traduzir: eu gosto muito de Rurouni Kenshin, então ficaria muito feliz de poder trabalhar com a série (mas ela já tem dono). De coisas não lançadas: Jojo, Hokuto no Ken, ou Houshin Engi (o melhor mangá que ninguém leu).

QxQ – Pode deixar uma recomendação de um anime ou mangá? Onde podemos te encontrar e conversar com você nessa internet?

Mucioli – Vou repetir a recomendação de Houshin Engi, porque é um mangá incrível. O anime, nem tanto. De anime, recomendo bastante um longa metragem chamado Sword of the Stranger. Ele tem umas das melhores animações de luta que eu já vi. E eu posso ser visto tuitando bobagem no @tengumaru, e respondendo perguntas existenciais tanto no Curious Cat quanto no podcast Balcão de Informações.

QxQ – Gostaríamos de agradecer ao Fernando pela disponibilidade em responder nossas perguntas. Sempre gostamos muito do trabalho dele e ficamos muito felizes com a oportunidade. Portanto, querido leitor, recomendamos que você clique em um dos link disponibilizados para conhece-lo melhor. Acreditamos também que é importante contribuir para a indústria. Portanto, incentivamos sempre que possível o consumo das obras oficiais enquanto elas são acessíveis.

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