O lado reverso da moeda em Suruga Monkey

Caso não tenha ficado claro através dos outros textos, a série Monogatari é um estudo de personagens. Nisio Isin busca através de sua narrativa explorar uma temática relacionada a um aspecto psicológico de um ou mais personagens. No caso de Suruga Monkey este é a interação e a diferença entre o consciente e o subconsciente.

A consciência é a racionalidade. A capacidade de pensar, refletir e analisar. A capacidade de tomar decisões que possam servir a um propósito específico. É a perspectiva pelo qual enxergamos a nossa realidade. Já o subconsciente é o reverso disto, de certa forma. É uma série de assimilações e concepções que temos como verdade. É o que nossa mente esconde além da superfície. O pilar fundamental de nossos princípios e instintos. No entanto, através da simplificação destes conceitos, somos capazes de enxergar o lado oposto. É possível entender que os dois não são lados necessariamente diferentes, um pode estar ligado ao outro, é apenas um outro lado da mesma moeda.

O problema de Suruga Kanbaru é a sua inabilidade de notar o seu subconsciente. A personagem tem uma forte tendência à inveja e ao egoísmo, mas é incapaz de perceber isto.

Quando pequena, Suruga, perdeu os pais e teve que ir morar com os avós. Curiosamente, em uma situação de inversão da moeda, uma outra perspectiva se torna visível para ela. Seus pais haviam fugido de casa devido a rejeição da família de seu relacionamento. Porém, Kanbaru é acolhida por seus avós e é muito bem criada e tratada por eles. Apesar disto, ela teve dificuldade de se adaptar em sua nova região. Emocionalmente distante devido ao luto, a criança estava fragilizada para formar novas conexões. Seu sotaque de Kyushu não a favoreceu também e Suruga foi recebida como uma intrusa. As outras crianças não se aproximaram dela, elas a ridicularizavam.

Havia uma vontade consciente de Suruga de fazer amizades e escapar do bullying. Para alcançar este fim, ela queria vencer uma corrida em um evento escolar. Era a oportunidade que tinha para surpreender os outros, especialmente por que Suruga também era ridicularizada por ser lenta. E este é o motivo consciente pelo qual ela utilizou o artefato deixado pela mãe. Tooe Kanbaru ou Tooe Gaen, conforme seu nome de solteira, deixou apenas uma coisa para Suruga: uma caixa de paulownia com uma mão mumificada dentro.

Havia poucas instruções junto com o objeto. Ele poderia realizar desejos, mas somente três. Suruga tinha dois desejos em mente. Um que ela realmente queria e outro que era mais um teste do que uma necessidade. Primeiro ela desejou inocentemente que pudesse correr mais rápido. Só que as instruções não mostram como o mecanismo funciona, Kanbaru não passou a correr mais rápido, seus amigos é que foram atacados. Ela sonhou com isso e logo depois a realidade dos fatos se confirmou quando as crianças se ausentaram da escola.

Em desespero, Suruga buscou informações sobre o artefato que possuía. Logo aceitou que se tratava de uma Pata de Macaco, um objeto místico que distorce desejos. Afinal, é lógico, não é mesmo? Ela seria a mais rápida se não houvesse com quem correr. Suruga molda sua persona através da culpa deste incidente, buscando se esforçar para vencer a corrida para que ninguém se machuque por sua causa. Ela busca realizar seus desejos por si só para não ter que ceder às distorções da Pata de Macaco, ela também aceita que não tem desejo que possa fazer que irá trazer seus pais de volta.

A virtude das ações seria bela e a história seria trágica…. Não fosse o outro lado da moeda. O artefato não é uma Pata de Macaco e sim um contrato com o Demônio Chuvoso. Este demônio é uma entidade baixa que tem a capacidade de realizar desejos em troca de poder. O contrato exige uma alma por três desejos. Kanbaru vendeu parte de sua alma ao diabo ao fazer seu primeiro desejo. Só que o Demônio Chuvoso não distorce desejos. Ele de fato os realiza, ele só consegue realizar os desejos violentos advindos dos sentimentos negativos da cognição de uma pessoa.

O que Suruga falhou em notar é que no fundo ela queria bater nas crianças que foram atacadas. Ela guardava ódio dentro de si pelos ataques que sofria, pela condição na qual havia sido colocada. Ela queria encontrar um lugar para si, portanto ela sentia inveja dos que o tinham e raiva pelos que a impediam. Sua pesquisa distorce sua perspectiva e a faz ver as coisas de outra forma. O que faz com que ela cresça, mas que ela se torne limitada diante da sua capacidade de reconhecer o seu subconsciente. Algo que Oshino trás à tona brilhantemente mais tarde na história.

Anos depois, Suruga conheceu e se apaixonou por Senjougahara Hitagi. Foi tudo muito rápido e novo para ela. Havia uma idolatria na maneira como Kanbaru enxergava Senjougahara, típica dos adolescentes. Ela colocou a amiga em um pedestal, em parte pois precisava disto, ela encontrou o alento que precisava do fardo que carregava na sua amizade com Hitagi. e de repente a sua vida passou a girar em torno disso. Foi aí que os seus impulsos se tornaram um pouco mais frívolos. Ela pensou em fazer um segundo desejo diversas vezes, quando tinha um jogo importante de basquete, quando brigava com um amigo, quando quis entrar na mesma escola que Senjougahara, quando foi rejeitada por Senjougahara…

Eventualmente, Kanbaru conseguiu atingir o seu objetivo se esforçando por conta própria. Ela estudou o suficiente para poder entrar na mesma escola que Senjougahara. E após anos de esforço, ela reencontrou a amiga que havia se isolado de tudo e todos e foi rejeitada por ela. Tal qual ela fez para afastar Araragi, Senjougahara intimidou Suruga para afastá-la. A diferença é que Kanbaru desistiu, incapaz de fazer um desejo por Senjougahara por medo de que este fosse distorcido. Claro, o desejo também não seria realizado pelo Demônio Chuvoso, mas ela não tinha como saber disso. Mesmo que fosse o caso, esta era apenas a superfície, a vontade consciente de Suruga. No seu subconsciente havia algo a mais… Suruga se via incapaz de se aproximar de Hitagi, de se esforçar por ela, porque quando a buscou, estava apenas pensando na sua própria felicidade. Estava apenas pensando no que queria e não no que Hitagi precisava. As expectativas que criou eram somente para si.

Por isso é extremamente doloroso para ela ver que alguém foi capaz de fazer tudo que ela queria e tudo que ela não pode. Que alguém havia tomado o lugar que ela acreditava ser dela. Suruga Kanbaru nunca sentiu tanta inveja na vida quanto ela sentiu de Araragi quando o viu receber o sorriso de Senjougahara. Seu desejo e sua obsessão são tamanhos, que ela é capaz de tentar negociar o próprio corpo com Araragi para obter o conforto emocional de Hitagi. É algo que conscientemente, Suruga quer ter a quase qualquer custo, e subconscientemente, ela quer obter a qualquer custo.

Se Suruga fosse capaz de enxergar o outro lado da moeda, ela não teria feito um segundo desejo. Ela teria se focado em melhorar e trabalhar em cima dos seus defeitos. Como isto não aconteceu, ela não se deu conta de que o desejo de estar ao lado de Senjougahara escondia também um ódio profundo por Araragi. Ela era incapaz de compreender o seu desejo de matar Araragi, pois este é subconsciente. Ela era capaz, porém, de compreender o arrependimento e a culpa do ato de machucar alguém.

No fim das contas, é a culpa que faz Kanbaru se aproximar de Araragi para verificar se está tudo bem com ele. E ironicamente, é essa aproximação que faz o Demônio Chuvoso de fato despertar, pois é somente por isso que Suruga confirmou as suas suspeitas do relacionamento de Senjougahara e Araragi.

Enquanto Suruga tem que lidar com a sua inveja e obsessão, Araragi também tem que lidar com o outro lado de sua moeda. Pode-se dizer que ele é mais consciente de seu subconsciente, mas tenta agir como se não fosse. Ele é incapaz de negar as consequências de suas ações durante suas férias de primavera, elas o perseguem constantemente. Porém, Araragi não consegue encarar isto de frente, ele age como se fosse indiferente, ele tenta esquecer o máximo possível. Motivo pelo qual ele age de forma tão distante de Shinobu.

A consciência de Araragi é uma máscara de racionalidade que tenta esconder o seu heroísmo, por que este mostra o quão frágil é o seu ego. Ele é justo e bondoso, mas tenta agir de forma apática como se tudo fosse se resolver pelas circunstâncias da vida por que é assim que as coisas são. Essa fachada sempre cai por água abaixo no momento em que uma situação exige sua empatia. No caso deste arco mesmo, Koyomi se vê desde o começo do lado de Kanbaru ao invés do de Hitagi, porque ele gostaria de ajudar Senjougahara a recuperar o que perdeu. Ele gostaria de ajudar Hitagi a recuperar a amizade de Kanbaru e parte de seu passado, pois sente que é o certo, já que o seu passado é irrecuperável. Este passado irrecuperável para Koyomi é aquilo que não pode mudar que ocorreu em Kizumonogatari e sua relação com Shinobu.

O subconsciente de Araragi, no entanto, é a não valoração de sua própria pessoa e um senso de justiça deturpado devido a traumas. O senso de justiça é um exagero do ideal do conceito, ou a emulação do conceito puro. Ao ponto em que Koyomi extrapola para a proteção de tudo e todos. Ele se vê incapaz de recusar ajuda a quem precisa de alguma forma, seja a pessoa boa ou ruim, desde que ele não precise machucar ninguém para isso.

A exemplo disso, Araragi está disposto a ajudar Kanbaru antes de pensar em si mesmo, apesar do fato de que ela o atacou. Conscientemente, ele decide ajudá-la pois sente que pode respeitar sua vontade de estar junto com Senjougahara e odiá-lo por isto, pois consegue se colocar na posição dela e se vê incapaz de ceder seu lugar junto com Hitagi. Porém, quando seu subconsciente vêm à tona, Araragi tem uma terrível predisposição ao auto sacrifício, aceitando a morte desde que Kanbaru pudesse concluir seu objetivo e Senjougahara pudesse recuperar o que perdeu. Seu impulso inconsequente o cega para a realidade de que a decisão que havia tomado era a pior para Senjougahara e para Kanbaru e portanto, a pior opção para si mesmo também.

É importante lembrar que a combinação de seus princípios, traumas e seu condicionamento fizeram com que Araragi abdicasse sua vida por Kissshot. Oshino evidencia o vazio do ideal de justiça do Araragi forçando-o a reconhecer a condição a qual ele subjugou a vampira lendária. Bondade por bondade nem sempre vai ajudar alguém. Essa é a fraqueza que Araragi possui e que ele não enxerga em Hanekawa, para ele, a garota é a maior representação viva do seu senso de justiça.

O lembrete de Oshino aproxima Araragi e Shinobu novamente. Forçado a admitir seus desejos mais profundos, Araragi se conforta no abraço gentil da vampira e pela primeira vez ele demonstra afeição por ela em Bakemonogatari. Se dando conta disto, ele sente a necessidade de confirmar mais tarde com Senjougahara que a relação dele com Shinobu não constitua traição para ela. Shinobu, por sua parte, continua demonstrando sua raiva por Araragi. E embora ele tenha cedido por um momento, Araragi ainda se mantém distante.

Talvez seja esse contato com a Shinobu que faz com que Araragi compreenda mais facilmente o que deve fazer. Existem três formas de lidar com o Demônio Chuvoso: Ser morto por ele e realizar o desejo de Kanbaru; arrancar o braço da aberração de Kanbaru; forçar o Demônio Chuvoso a ver que a realização do desejo do contrato é impossível. Araragi é consciente de que por mais que ele entenda e sinta empatia pela situação de Kanbaru e pelos sentimentos dela por Hitagi, ninguém é substituível. Portanto, ele não quer morrer e ele não quer sacrificar o futuro de Kanbaru ao arrancar o braço dela. A terceira opção é a única viável, então Oshino o ajuda a preparar uma armadilha.

A situação acaba invertida por uma série de razões, dentre as principais, a vontade da própria Kanbaru. Ela mesma passa a atacar Araragi ao invés de se resignar a tentar se livrar do braço. Seu ódio por Araragi transborda de tal forma que torna o Demônio Chuvoso capaz de pressionar e acabar com Araragi.

Oshino, esperto com é no seu papel de mediador pacifista, preparou uma armadilha para o próprio Araragi. Ele se aproveitou do fato de que Koyomi estava ocupado confrontando Kanbaru para ligar para Senjougahara. Utilizando o próprio celular do Araragi que havia pegado antes com a desculpa de guardar suas coisas, já que já havia previsto o resultado iminente da luta iria transcorrer.

Somente Hitagi tem a força necessária para impedir o Demônio Chuvoso. Como o outro lado da moeda, o Demônio Chuvoso não pode ignorar Senjougahara como parte do desejo de Kanbaru. Portanto, quando ela explica que se Araragi morrer, ela irá matar Kanbaru, o Demônio Chuvoso percebe que é incapaz de realizar o desejo de Suruga.

Se Araragi já conhecia melhor o seu subconsciente, pode-se dizer que ninguém é capaz de superar a Senjougahara neste aspecto. Viver dois anos sem o peso de suas emoções e readquiri-las faz com que Hitagi seja altamente autoconsciente de sua personalidade. Ela entende que teme o contato físico e a aproximação de pessoas, mas que ela quer ter isso em sua vida também. Seus diálogos deixam bem claro essa dualidade de desejos dentro dela. Ela mantém uma certa distância e ela diz coisas que podem distanciar as pessoas. É visível que suas barreiras ainda estão de pé. Às vezes ela tenta esconder um pouco o que realmente pensa, mas ela sempre é honesta quanto ao seu amor por Koyomi. Esta honestidade desarma e encanta Araragi e demonstra este aspecto de sua psique.

A dualidade dos sentimentos de Senjougahara também fica clara na sua relação com Suruga. A relutância em trazer de volta um aspecto de seu passado reflete o seu distanciamento daquele tempo. Porém, confrontada com a situação, ela também acaba sendo honesta com Kanbaru. Sobre como ela não sente o mesmo que ela. Sobre como ela não ia se incomodar se ela quisesse estar do lado dela desde que sob essas condições. Ainda havia um desejo de Senjougahara de reviver sua antiga amizade, mas ela era consciente dos sentimentos de Kanbaru, consciente do peso de sua rejeição. Kanbaru jamais substituiria Araragi. Unindo isso ao desejo de seguir em frente havia obscurecido o seu desejo por essa amizade, Hitagi não quis tentar. Só que o desejo ainda existia no fundo de seu coração.

No fim das contas, tudo que Senjougahara precisa é de pessoas que mostrem a ela que se importam. Há lugar para Kanbaru em sua vida, desde que ela aceite Araragi. E por estar ali, Hitagi mesmo acaba sendo a ponte para que Araragi e Kanbaru se conectem com seus próprios interiores e sejam capazes de aceitar.

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