As barreiras da comunicação em Mayoi Snail

Não existem verdades absolutas. É pretensioso acreditar que a sua visão acomoda toda a realidade. No fim das contas, só o que temos são perspectivas e com cada uma delas há novos fatos. Há omissões, divergências e contradições. É tão contraditório, de fato, que a compreensão de que não existem verdades absolutas é em suma, uma verdade absoluta. O que chamamos de verdade é só o consenso das partes, a resolução de um conflito comunicativo.

É claro, se você discorda de mim, você está em seu perfeito direito de exercer a sua perspectiva. O que digo é apenas um fragmento de verdade afinal, uma pequena peça do quebra-cabeças. Há muito mais que eu não vejo do que aquilo que vejo. Nossa conclusão depende de comunicação. E é sobre isso que é o arco Mayoi Snail, o segundo conto do primeiro volume de Bakemonogatari.

Hachikuji Mayoi é uma aberração. Tal qual Kissshot e tal qual o deus caranguejo que afligiu Hitagi. Ela é o que especialistas chamam de Caracol Perdido ou Vaca Perdida. Um fantasma que assombra os caminhos, condenado a jamais chegar ao destino e jamais retornar para casa. Há 10 anos atrás, no entanto, Hachikuji era uma garota comum passando pelo transtornado divórcio dos pais.

Uma vez amantes inseparáveis, depois de casados, os pais de Mayoi não faziam nada além de brigar. Eventualmente, a situação saiu do controle e foi decidido que Hachikuji iria ficar sob a guarda do pai. Só que houve um acordo. Uma medida forçada pelo pai de Hachikuji à mãe dela e a própria garota. Ele não queria que as duas se encontrassem novamente.

Quando se é criança não é possível ter escolha diante de questões adultas. Mayoi foi forçada a seguir o ritmo estabelecido pelo pai. Já não via a mãe há tanto tempo que não conseguia distinguir o rosto dela como algo real. Não sabia se a mãe também gostaria de vê-la, se de repente ela a odiava. Decidiu encontrar a mãe no dia das mães, apesar de todas as suas dúvidas. E nesse dia morreu atropelada no meio do caminho, quando um carro atravessou o sinal vermelho…

No cerne de cada parte desse arco há um dilema de comunicação. Os problemas entre os pais de Hachikuji que já não conseguiam mais se entender. A comunicação entre Hachikuji e sua mãe que foi prejudicada, fazendo a garota questionar o seu amor. Até mesmo na sinalização de transito que foi infringida pelo motorista que matou Mayoi. E é claro, no formato desta história, que apesar do nome, não é centrada em Hachikuji Mayoi.

Um Caracol Perdido é uma aberração que faz as pessoas perderem o caminho. Que perturba aqueles que caminham pelas estradas e os impede de chegar ao seu destino. O efeito afeta aqueles que não querem voltar para casa. Mayoi como uma aberração aflige Araragi.

Naquele dia das mães, Araragi estava em um humor especialmente depreciativo. A máscara de sua apatia é derrubada para mostrar sua depressão. Koyomi não gosta de datas comemorativas, por que ele se sente deslocado. Quando deixou de ser o garoto de ouro, ao entrar no ensino médio e ter dificuldades, houve um distanciamento entre ele e os pais. Não havia conflito ou brigas, não havia sequer ódio entre eles. Simplesmente um distanciamento, uma noção de valor deturpada, em especial pelo contraste da relação da família com as irmãs.

Há um problema comunicativo entre eles, mas nenhum dos lados buscou uma solução. Então, sentindo-se enclausurado pelo sentimento, Araragi decidiu que seria melhor não passar o dia das mães em casa. Suas irmãs, Karen e Tsukihi o pegaram no flagra e eles brigaram. A repreensão das irmãs sobre como ele nunca vai crescer o enche de vergonha. Nesse impasse, Koyomi não deseja voltar para casa, consciente de que terá que se desculpar.

Ele anda a esmo e decide descansar em um parque, onde por acaso, encontra Senjougahara. Após conversar por algum tempo, ele vê novamente (pois já tinha visto antes) uma garotinha do primário olhando para um mapa residencial da área. Ele não tinha ideia de que ao se aproximar, estava tentando ajudar uma aberração. Embora ele fosse ajudar, mesmo se soubesse que o que Hachikuji é.

Hachikuji, a peregrinação dos 89 templos, hoje em dia esquecida. “Ji” significa templo, enquanto “Hachiku” significa oito e nove. Só que “Hachiku” ainda tem um significado oculto relacionado a bosques de bambu. Então 89 templos se juntaram para formar o maior ciclo de peregrinação do Japão. E falharam. Pois “Hachiku” também pode ser lido como “Yaku” que significa infortúnio. Os templos depois tentaram esconder a sua ligação com a peregrinação Hachikuji. Palavras tem poder, língua tem poder. Uma pena que o nome da garota tenha mudado para Hachikuji após o divórcio. Talvez o seu atropelamento tenha sido fruto da linguagem.

Então o encontro de Hachikuji e Araragi simboliza o infortúnio de sua situação. Qual situação? Isso cabe a interpretação pessoal ou para contos futuros. Para Koyomi, no entanto, Hachikuji não era um problema. Mesmo sendo atacado por ela, ele se divertiu com ela. Ele gostou dela e confiou nela. Hachikuji tentou afastar Araragi para protege-lo de si mesma. Ela o chutou, mordeu e o reprimiu verbalmente para que não se afastasse do seu caminho. Porém, Mayoi também não pode deixar de ser sincera quanto a aproximação que sentiu com Araragi.

A aproximação dos dois é condenável, no entanto. Alguns aqui vão achar que isso se deve a piada de assédio sexual, mas isso é analisar somente a superfície. A piada de assédio sexual é uma metáfora para o relacionamento de Araragi e de Hachikuji. Figura de linguagem que surge através da narração e do visual quando Araragi compartilha com Hachikuji o peso de seus problemas. É quando Araragi impõe em uma criança o seu fardo que a relação dos dois é deturpada. Araragi encontra confiança em Hachikuji e vê nela uma válvula de escape para desabafar os seus problemas. Isso ocorre devido a confiança, porém não deixa de ser errado essa divisão de responsabilidade.

Quem leu os artigos anteriores sobre a série Monogatari sabe que Araragi engana a si mesmo. Em Mayoi Snail o ódio que o personagem sente por si mesmo é evidenciado de novo. É reiterado a ideia de que ele não gosta de datas especiais por que fica consciente de sua mesquinhez. Só que no fundo, esse sentimento é algo que Araragi sente constantemente e evita notar. Todos os problemas que culminam na sua fuga do dia das mães são tormentos cotidianos dele. A apatia e desconexão com a realidade que ele sente são frutos dessa ansiedade.

Araragi encontrou Hachikuji por que evita se comunicar com o seu íntimo. Ele isola completamente sua noção e valor como indivíduo. De uma forma diferente, ele faz o mesmo que Hanekawa faz, por isso ele consegue se ater tanto aos seus princípios. É devido a sua natureza que Oshino passou a solução do problema de Hachikuji para Araragi através da Senjougahara. Em contrapartida, é por causa disso que Araragi é tão relutante em acreditar que Senjougahara sente algo por ele.

Com seus sentimentos intactos e inteiramente seus, Senjougahara passa por um novo dilema. Ela tem muita dificuldade de externalizar suas emoções. Ela compreende os próprios sentimentos, mas possui bloqueios mentais quanto à sua exposição. Os dois anos em que a garota viveu em isolamento e o fardo emocional de seu trauma tiveram o seu preço. Senjougahara perdeu a capacidade de se comunicar.

Ainda assim, ela tenta ser honesta e se aproxima de Araragi. Tudo que ela diz deixa claro que ela sente interesse em Koyomi, mas ela anda em círculos quanto à sua afeição e acaba por fazer parecer a diversão dos argumentos com o Araragi ou a necessidade para poder recompensá-lo de alguma forma por tê-la ajudado. Araragi por sua vez se vê consciente do interesse, mas tenta negá-lo em virtude das desculpas que surgem. As desculpas são incômodas e decepcionantes para ele. Koyomi demonstra sentir cada vez mais interesse em Senjougahara, mas evita se enxergar como um pretendente em potencial.

Essa primeira falha comunicativa acaba por ser o princípio de uma segunda. Senjougahara é incapaz de ver Mayoi, por que ela não se incomoda em voltar para casa. Então quando Araragi fala com ela sobre Hachikuji, ela internaliza a ideia de que tem algo de errado com ela mesma, mas não externaliza isso para Araragi. Ela acredita que ela é quem tem algum problema por não ser capaz de enxergar a garota. Se vê então incapaz de ser honesta a respeito da situação devido a sua insegurança.

Felizmente, para Araragi, Hachikuji e Senjougahara, Mémé Oshino está lá para ser a ferramenta que vai solucionar os problemas de comunicação. Através de sua resposta, todas as perspectivas ficam expostas e é possível encontrar uma saída.

Pela sua predisposição, Araragi decide não abandonar Hachikuji. Ele poderia voltar para casa assim que se afastasse de Mayoi. Porém, com ou sem a ajuda de Oshino, ele faria tudo que pudesse para que Hachikuji cumprisse o objetivo de chegar à casa da mãe. Oshino compreendia isso, então contou a forma de encontrar o caminho certo. Só que a ação de Araragi comunica algo para Hitagi. Que essa é a essência dele, que ele faria isso por qualquer pessoa, não só por ela.

Já consciente do interesse, Senjougahara se vê consciente do amor. Não a ideia de amor à primeira vista e destinado, mas a ideia do amor persistente, do amor construído. Amor que ela quer que seja recíproco de Araragi. E por isso, ela quebra a barreira da linguagem e se comunica com ele em inglês para deixar bem clara a sua confissão: “I love you”.

A resposta de Araragi para confissão retorna o sentimento através de uma linguagem que evoca os sentimentos internos de Hitagi. A brincadeira linguística tem a mesma essência em japonês e em inglês, mas são distintas em seu impacto.

Em inglês, Senjougahara fala para Araragi da palavra “smelt”. A palavra é utilizada no sentido de derreter o coração. Senjougahara então explica como o termo possui a mesma raíz da palavra “melt” que também significa derreter. Só que “smelt” é mais forte, por que enquanto “melt” pode se referir a derreter qualquer coisa “smelt” é específico para derreter minérios. Ela então diz que há fortes esperanças como um termo da próxima geração, algo como “That maid smelt my heart” ou “I smelt for cat ears!”.

Em japonês, Senjougahara fala da palavra Toré. Toré é o segundo Kanji da palavra “Mitoreru” que significa ser fascinado por alguém. O Kanji é escrito com o ideograma de coroa de grama sobre o ideograma de água quente. Enquanto que na palavra moe, o ideograma de grama é complementado pelo ideograma de raios de sol brilhantes.

A ideia é de que o atributo de moe é um lapso de momento que pode servir para qualquer coisa. Enquanto o atributo de “smelt” ou “tore” é algo que é construído com o tempo e demanda cuidado. O cuidado para extrair um mineral ou o cuidado para cultivar a grama através da água quente. A ideia de amor construído, de fascínio profundo. Um conceito que a próxima geração pode abraçar que vai ser superior ao moe desta atual geração.

Esse é mais um exemplo comunicativo. Neste caso, o autor, Nisio Isin se comunica com o leitor a respeito da cultura otaku. É deixada clara a sua visão quanto à falta de profundidade do fascínio gerado por muitas obras. Contrabalanceado com a esperança de que as futuras gerações procurem fascínios mais profundos. Eu diria, no entanto, que existem muitos trabalhos moe com o fascínio profundo de “toré” ou “smelt”. Mas não me delongarei nessa tangente.

O que Araragi responde para Hitagi é que ele espera que vire moda. “Senjougahara Toré” ou “My heart smelts for you, Senjougahara”. A esperança de que cresça entre eles o fascínio de um amor construído e o firmamento do pacto de comunicação entre eles. Não havia melhor resposta para a confissão honesta da garota.

Por muito tempo, o arco de Mayoi Snail foi um dos mais fracos para mim. Hoje em dia eu sou fascinado pelos temas dele. Sinto que a história encapsula o que é Monogatari. Um estudo de personagens, um trabalho de perspectivas e uma discussão de comunicação em diversas camadas. Para mim, não há elogio maior que possa ser feito a um arco.

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