O propósito do “eu” em Kizumonogatari

Originalmente lançado em 2008, Kizumonogatari foi o terceiro livro publicado da série Monogatari. Porém, tanto o autor, Nisio Isin, quanto a editora Vertical acharam interessante que ele fosse lançado primeiro no ocidente. A história serve muito bem como uma porta de entrada para série, embora ela seja um pouco diferente quanto a sua forma. Então em dezembro de 2015 o conto da ferida foi lançado na América. Fazendo a alegria de inúmeros fãs que aguardavam ansiosamente a adaptação do livro em anime. Eu incluso entre eles.

É relevante ressaltar que Kizumonogatari é um trabalho de perspectiva. Não existe certo ou errado definido, apenas interpretações. Acompanhamos a perspectiva de Koyomi Araragi durante suas férias de primavera, portanto, tudo que é possível absorvermos é válido somente diante dessa ótica. A única coisa que posso adiantar é que o final miserável para todos o é de fato.

Porém, este é apenas o começo de uma grande história e ainda há esperança em sua conclusão.

Koyomi Araragi nada mais é do que um fugitivo. Outrora o garoto de ouro da família, ele sofreu algo que o transformou completamente, tornando-o um desistente – não literalmente, moralmente -, um delinquente aos olhos dos seus compatriotas. Este “algo” nunca é de fato explorado nesta história, mas a circunstância em si não é importante para analisarmos o que se passa. Sempre que o protagonista está para se lembrar, ele foge. Apesar de ser perceptivo e inteligente, ele é muito capaz de se iludir e se distrair. No fundo não é como se ele não se lembrasse, ele apenas quer esquecer que o problema está lá. E assim, sua incapacidade de lidar com este problema, com sua amargura, com sua visão de mundo lhe causa depressão.

A vida de Araragi acaba tão sem propósito quanto sua moral, ele se afasta de tudo e todos, inclusive de sua família, para proteger-se. Sem absolutamente nada, mesmo de férias, o garoto não tinha o que fazer fora da escola, então ele andava a esmo. O jeito peculiar do rapaz o tornou uma peça fora do construto social, mas é justamente esse deslocamento que interessou Tsubasa Hanekawa. Não fosse isto, eles não teriam conversado, não fosse isto, Araragi não teria conhecido Kissshot Acerolaorion Heartunderblade.

Um rumor ouvido e um pouco de hormônios levaram o adolescente à rua. A hora certa o encontrou, por acaso ou por destino. Sob a luz de um poste, Koyomi Araragi vislumbrou do céu e do inferno. O terror não-vivo, uma vampira. A beleza mais pura, Kissshot. Em meio a fascínio e medo, Araragi deu de bom grado sua vida. Não sem antes pensar nos seus entes queridos, não sem antes achar que compreendia o peso de sua escolha. O peso do suicídio que foi mascarado como auto-sacrifício.

A justificativa egoísta era a de poder renascer como alguém melhor. Sua incapacidade de tentar ser diferente o levaram até ali, sua falta de propósito o fez tomar esta decisão. Mesmo amando sua família, o distanciamento natural que ocorreu entre eles ainda o fazia se sentir sozinho. Ele queria poder ser alguém melhor ou até mesmo alguém pior que não seguiria os mesmos princípios. Tudo estaria bem desde que ele não fosse ele mesmo, mais do que evidenciando sua baixa estima pessoal.

O ato de altruísmo é falso, nada mais que satisfação própria. Dar a vida por algo belo, por uma existência maior, por piedade, por devoção. São palavras doces de significado dúbio. O fim que Araragi encontrou era o propósito que ele sentia que faltava em sua vida. Salvar Kissshot não era só morrer, era também encontrar um bom motivo para desistir e foi fácil para ele fazer isto. No entanto, o desejo de Araragi nunca foi realizado.  Ele que salvou foi salvo em retorno por Kissshot logo após seu sacrifício e tornou-se um vampiro.

A mudança de natureza de Araragi não o preparou para lidar com o que enfrentaria. Apesar de sua percepção e inteligência, sua falta de experiência e maturidade fez com que ele dançasse aos tons dos outros. Sua situação extraordinária o colocava em desvantagem quanto aos que entendiam do mundo sobre o outro lado do véu. Então foi de extrema importância que Hanekawa estivesse lá também. Para ser uma bússola para ele, para ser uma âncora que o enraizasse ao mundo para o qual ele queria retornar. E também para assustá-lo…

Tsubasa Hanekawa é uma presidente de classe entre presidentes de classes. Um ser humano entre seres humanos. O ápice da perfeição, o senso de justiça ideal. Tão ideal que é um fardo pesado demais para que os outros suportem. Tão perfeito que é cruel. Certamente ela é uma garota incrível, mas sua fachada esconde uma personalidade assustadora.

Embora não da mesma forma que Araragi, Hanekawa também é deslocada do mundo comum. Ela almeja encontrar grandiosidades que vão além da compreensão humana. Seu interesse por Araragi acaba sendo natural devido a essa curiosidade. E talvez por causa das similaridades entre eles. A presidente de classe também parece esconder algo, fugir de algo. Ela não se importa com horários e evita o máximo possível ir para casa. Seja estudar ou conversar com Araragi, a desculpa da vez irá mantê-la na rua pelo máximo de tempo que ela conseguir. A diferença é que a fuga de Hanekawa não é desistir de viver e dos seus problemas e sim de se esforçar ao máximo para ser tão normal que não haverão problemas. A fuga dela é fazer jus à um ideal que ninguém é perfeito ou louco o suficiente para manter e por isso ela é capaz de fazer o que faz.

Por isso, ignorando todos os riscos, Hanekawa foi capaz de se sacrificar por Araragi. Sem hesitação, sem culpa, sem medo e sem pena. Enquanto é inegável que ela o fez por afeição, é intimidadora a sua devoção ao seu jeito de agir. Mesmo à beira da morte, mesmo sob intensa dor, cada segundo é utilizado conscientemente com perfeição em prol do objetivo de ajudá-lo. A sua colaboração foi essencial para que Araragi superasse o seu recesso de primavera infernal, porém a um custo inaceitável: o de negligenciar a si mesma como indivíduo enquanto se mantém fiel aos seus ideais. Independente do ato de satisfação própria, Hanekawa não tem uma auto-estima baixa, ela literalmente não tem nenhum valor por si mesma.

Por isto, mesmo quando Araragi dá o seu sangue para salvá-la da morte certa, o peso que isto têm não é o mesmo do contrário e a partir dali ele já passa a carregar uma dívida dentro de seu próprio coração. Ironicamente, ao longo deste período turbulento é a garota que não tem nenhuma estima própria que fez com que o garoto que não se valorizava aprendesse pelo menos um pouco a desenvolver um pouco sua identidade. É Hanekawa que faz com que Araragi não desista de ser humano, é ela que mostra para ele que existe algo pelo qual deve se tentar viver.

Kissshot Acerolaorion Heartunderblade. Possivelmente o ser mais forte do planeta, uma existência superior a todas as outras. A matadora de aberrações a quem já foi oferecido a oportunidade ser uma deusa. Aquela que viveu mais de 500 anos. E independente de todos os títulos, lendas e de sua majestosidade,  Kissshot era só uma garota que estava cansada de viver.

Uma vez jovem e impetuosa, Kissshot gostava de viajar e explorar. Ela tinha uma curiosidade a alimentar. Durante 100 anos ela viveu sob esses impulsos e então finalmente fez um servo. Alguém em quem ela pudesse confiar, alguém que ela queria ao lado dela. Um amante cujo amor não durou. Após alguns anos, o primeiro servo cometeu suicídio ao deixar a luz do sol esgotar a sua imortalidade. Nem sempre é fácil para um humano deixar de ser um humano, há a necessidade de inverter alguns valores e isto é algo condenável pela maioria de nós. Kissshot aprendeu esta lição da pior maneira possível e a culpa que sentiu por ter contribuído para o incidente a acompanhou durante 400 anos.

Curiosamente, apesar da imortalidade, é raro que vampiros vivam tanto tempo. Muitos são caçados, mas os problemas com os caçadores são o de menos. O que mata quase todo os vampiros é o tédio. Uma vida longa demais acaba por deixar de ter propósito e muitos se suicidam após uma ou duas centenas de anos. Senão o tédio, a culpa. Pouquíssimos vampiros tem a resiliência para superar a eternidade. Ainda assim, Kissshot carregou consigo culpa e o tédio e viveu durante 400 anos através de incontáveis ciclos de brutalidade. Por 400 anos, Kissshot procurou um lugar para morrer, um motivo para morrer. E quando ela desistiu, ela decidiu voltar para o Japão, o lugar onde fez o seu primeiro servo.

E é assim que esse conto cruel de fato começa. Kissshot chega ao lugar onde ela quer morrer, sua guarda baixa devido sua depressão profunda e seu desejo por suicídio. Oshino aproveita a oportunidade única para agir como um representante da humanidade e em um ritual que envolvia preparação, habilidade e sorte, conseguiu roubar o coração de Kissshot sem que ela percebesse.

Uma vampira sem um coração para bombear o sangue tem o seu poder drasticamente reduzido. Esta era a única chance que a humanidade poderia ter de um conflito equilibrado. Os três caçadores, Dramaturgy, Episode e Guillotine Cutter fizeram então a sua parte. Surpreenderam Kissshot com um ataque simultâneo e conseguiram roubar seus membros.

Ela teve forças para escapar e o que pareciam os seus últimos momentos foram preenchidos pelo medo. O medo de morrer, o medo de deixar de existir. No fundo, o que Kissshot queria era um motivo para viver, ela queria um propósito novamente. O seu lamento e choro ao perder as esperanças de que Araragi fosse ajuda-la são um sincero pedido de desculpas pelos seus erros. Enquanto Araragi era comovido pelo lamento e pela beleza de Kissshot, seus últimos pensamentos ao achar que estava a se entregar para a morte são um reflexo dos pensamentos de Kissshot também. Os dois eram almas perdidas em busca de propósito e acabaram por encontrar propósito em salvar um ao outro. Em morrer um pelo outro.

Araragi foi o primeiro ser que ajudou Kissshot. Humano ou vampiro, ele foi o primeiro que de fato fez algo por ela. Nem mesmo o primeiro servo fez algo por ela que parecesse ter tanta consideração, muito provavelmente pela condição que lhe foi imposta que o fazia rejeitar o vampirismo. O heroísmo de Araragi acaba por comover Kissshot, mesmo que ao reconhecer o ato como tolice e ver através da máscara do altruísmo. E independente do fato de que ela sentisse que Araragi teria feito aquilo por qualquer um, não só por ela… Foi natural que Kissshot amasse Araragi e foi natural que ela o tornasse seu servo. O seu segundo servo em 500 anos.

Não fazer servos é uma noção comum entre os vampiros. Pelo peso que isso tem para quem eles transformam, pelas chances de dar errado e o recém vampiro tornar-se uma besta insana. E principalmente, pela intimidade do momento que nada mais é do que uma relação sexual. Vampiros não se alimentam sugando sangue, eles se alimentam comendo. Sugar o sangue é compartilhar da essência de alguém e é também entregar parte de si. É um ato de intimidade absoluta.

Ao tornar Araragi seu segundo servo, Kissshot o escolheu como amante. Kissshot fez sexo com ele e o escolheu como o propósito de sua vida. Fosse para viver ao seu lado, como ela gostaria. Fosse para morrer por ele e torná-lo humano novamente, salvando-o. Após 400 anos, Kissshot finalmente encontrou o propósito que procurava na vida de outrém.

Araragi ao se ver ainda “vivo”, adquiriu o propósito de ajudar Kissshot. Apesar de ter duvidado da vampira algumas vezes, ele acaba por confiar nela no fim das contas. Mais do que isso, ele queria confiar nela, tanto que ele ignora o mais básico sobre vampiros… Que eles se alimentam de seres humanos. Ele acaba sendo facilmente manipulado por Kissshot a se voltar contra ela, quando descobre que ela se alimentou de Guillotine Cutter no último terço de Kizumonogatari.

Os momentos seguintes ao se dar conta do que ele estava tentando esquecer são descritos por Araragi como um inferno. Todas as suas férias de verão teriam sido uma grande piada em forma de inferno. Era o que parecia para ele, tendo em vista o quanto ele se deixou enganar. Ele se culpa pela morte de Guillotine Cutter, ele se culpa por qualquer um que for vir a ser morto por Kissshot. Não a condenando por completo, no entanto, afinal, o seu senso comum humano que acha aquilo abominável. Kissshot morreria se não se alimentasse, ela precisa fazer isso. Ela é uma existência superior.

A resposta na qual Araragi chegou no fim das contas foi de que deveria se redimir pelos seus pecados se matando. Mais uma vez ele iria desistir, confrontado com a realidade tão cruel, Araragi não se sentia digno de continuar vivo. E novamente é Hanekawa que o salva. Ela que vai ao encontro dele, que entende o que ele pretende e mostra que ele possui uma responsabilidade. É Hanekawa que o lembra que é horrível que qualquer pessoa morra. É um confronto direto com a hipocrisia do Araragi de fazer o que ele não concorda. Ele tem o dever e a responsabilidade de parar Kissshot, já que neste momento ele é o único que pode fazê-lo. Curioso é que a Hanekawa se isenta desta situação e não se coloca no mesmo papel, já que ela mesma deu a sua vida por Araragi no decorrer da história. A diferença seria que o seu auto-sacrifício isola-se de motivações egoístas e talvez não se caracterizaria como suicídio, mas será mesmo que não existe nenhum pouco de hipocrisia diante destas circunstâncias?

A figura de Hanekawa é importante por que é a conexão do Araragi com o mundo humano. O seu papel como guia durante Kizumonogatari é uma influência vital para que Araragi se torne quem ele se tornou subsequentemente. É o apoio dela e o confronto com os falsos ideais de Araragi que o lembra o quão importante é continuar tentando, o quão importante é viver e não desistir. Não só por si, mas também pelos outros. Porém, não bastasse ela redimir a sua humanidade, ela também a destrói. É Hanekawa que lhe dá um ideal a qual perseguir, um ideal pelo qual ele decidiu entregar a sua vida levianamente no começo desta história e que ele já perseguiu em vida no passado. Hanekawa dá um novo propósito para a existência de Araragi quando todas suas convicções se perdem após o choque de realidade que teve. Um que tem seus pontos positivos e negativos e que ainda será muito debatido nos próximos contos.

O que torna ainda mais intrigante a rejeição de Hanekawa para muitos. Durante toda a novel, a garota demonstra interesse em Araragi e não só como uma amiga. Ela gosta quando ela sente que ele está interessado nela. Estava pronta para perder sua virgindade com ele no galpão da escola Naoetsu. Só que no fim das contas, apesar de todas as piadas e de algum interesse sexual, Araragi nunca dá um passo além. Ele continua a enxergar Hanekawa como uma amiga. Ele impõe a ela o papel de amiga. O motivo será explorado somente no futuro.

Se teve alguém que fez com que Araragi sentisse amor, no entanto, foi Kissshot. Sua admiração e confiança pela vampira são aspectos retratados como devoção. Ele não estava pronto para dizer adeus para Kissshot, então enrolou para voltar a se tornar um humano. Após a recuperação de todos os membros e do coração de Kissshot, Araragi vê a sua forma perfeita na integra. Ele descreve Kissshot como o único momento em toda sua vida que ele viu beleza verdadeira. Nem mesmo o corpo de Hanekawa e a tensão sexual forte dos adolescentes se comparavam a isto. Não fosse somente a beleza, a conversa entre Araragi e Kissshot no telhado da escola de cursinho se destaca para ele como a memória mais vívida e importante do período de recesso da primavera. O mais significativo para ele foi conversar e poder rir ao lado de Kissshot e vê-la sorrindo também. Isto é interessante dado ao fato de que eles são paralelos um do outro e de que conseguem enxergar felicidade e propósito em si um através do outro.

Todas as peças do cenário estão prontas para se encaixarem e o quebra-cabeças se resolver durante o combate entre Araragi e Kissshot. Oshino observa a conclusão que ele aguardava desde o começo. Hanekawa torcia para a vitória de Araragi. Já Koyomi assumia responsabilidade pelos seus pecados e pelos de Kissshot e tentava afastar a proximidade de sua existência ao identifica-la como predadora de seres humanos. O rapaz precisou se forçar a se enxergar como comida de Kissshot para conseguir agir contra ela no papel de humano. Já Kissshot passava por um misto de melancolia e realização. A melancolia e tristeza de ter sido rejeitada pelo seu servo que não quis viver ao seu lado. A realização de poder dar a vida por ele e finalmente ter encontrado finalidade.

No fim das contas, Kissshot morreria como a única culpada pela situação. Como um monstro. Ela morreria como gostaria, sacrificando-se por quem amava. Se não fosse por Hanekawa e seu assustador e cruel ideal de justiça.

Ao compreender a intenção de Kissshot, Hanekawa age por impulso e conta para Araragi que tem algo de errado. Ela acaba com a farsa preparada por Kissshot para atender o que ela acreditava ser certo. É igualmente cruel e piedosa sua ação de fazer Araragi se dar conta de que a culpa não é só de Kissshot. Hanekawa faz ele se dar conta de que Kissshot só estava agindo para que ele pudesse matá-la sem culpa. Hanekawa acaba por tornar a situação muito mais difícil, faz com que Araragi seja obrigado a sentir o peso real de um assassinato, e não o da severa justiça, para poder cumprir a sua responsabilidade.

É simbólico que o momento em que Araragi compreende o que está acontecendo é quando ele está a sugar o sangue de Kissshot para eliminar sua existência. É quando ele saboreia o que acredita ser a melhor coisa do mundo. É explorando o íntimo de Kissshot, no ato análogo a sexo que ele compreende a sua intenção. É durante o ato que ele finalmente sente o carinho e a devoção que ela tem para com ele. Ele finalmente entende que ela estava tentando fazer o mesmo que ele havia feito antes, cometer suicídio.

Ser rejeitada por Araragi por ser uma vampira fez com que o único propósito que Kissshot pudesse encontrar fosse morrer por ele. Da sua própria maneira, era também uma fuga da realidade, tal qual Araragi havia feito antes. Não existe certo ou errado quanto a suicídio. Tudo é só uma questão de ponto de vista. Porém, todos concordam que é horrível quando alguém morre.

Araragi é incapaz de ver Kissshot como uma figura tão distante, como um monstro. Ela era apenas uma garota que deu tudo por ele, assim como ele deu tudo por ela. Mesmo a morte de Guillotine Cutter é também sua culpa, o caçador decidiu confrontar Kissshot por que Araragi enrolou para se tornar humano novamente. Por que a presença forte de Kissshot transbordou do prédio do cursinho durante horas a fio e a promessa de Oshino de lidar com ela não parecia ter sido cumprida.

Não havia destino mais cruel. Araragi queria uma saída onde todos pudessem ser felizes, mas o mundo não é tão conveniente. Se ele não matasse Kissshot, ele seria culpado por quem ela comesse pra sobreviver, ainda condenaria ela a viver com o peso de ainda mais culpa, pois se mataria por não poder voltar a ser humano. Por outro lado, se ele matasse Kissshot, ele viveria com o peso da culpa, pois ele iria sacrificar quem deu a vida por ele. No fim Kissshot teria encontrado o seu alívio em um propósito, mas a sua resignação melancólica é medo da inevitável rejeição e no fim, Araragi lhe daria justamente o que ela teme. Consciente disso, Araragi jamais conseguiria viver em paz, a tristeza de quem ele queria ver feliz seria um peso para carregar por toda a vida.

Sem saída ele clama por Oshino, o único que poderia oferecê-lo alguma opção. E o especialista só pode oferecer uma: Miserabilidade equivalente para Araragi, Kissshot e a humanidade.

Oshino é uma figura curiosa. O seu ato em prol dos seres humanos e o seu ideal de manter o equilíbrio deram motriz ao encontro de Araragi e Kissshot, mas ao invés de aniquilá-los, Oshino decidiu agir como um intermediário para os dois e sempre estava próximo “por acaso”. Ele parece tê-lo feito por ver que Kissshot iria tornar Araragi humano novamente e morrer por ele, é o que ele diz, mas se o nosso narrador já não é confiável, o Oshino sob sua perspectiva é menos ainda. De qualquer forma, o negociador acabou por restaurar o equilíbrio para o lado inimigo por que considerava Araragi um ser humano. E apesar do risco de estar errado, ele acreditou na honestidade de Kissshot. Não havia espaço para falha em seu julgamento, se ele estivesse errado, a humanidade iria pagar um preço muito caro. E agora ele finalmente encontra uma forma de resolver este impasse.

Kissshot entra em desespero ao ver o seu propósito deixar de existir, ao ver que seu tormento ainda não teve fim. Após 500 anos, tudo que a vampira queria era descansar, mas ela não pôde. Foi destituída de sua estatura superior. A mestra se tornou serva. Uma piada humana de vampiro que não pode sugar o sangue de ninguém a não ser Araragi. Kissshot é forçada a viver por Araragi, mesmo sem propósito.

Já Araragi se torna uma piada vampírica de humano e vive no limiar entre o mundo das aberrações e o comum. Ele carrega consigo a culpa da morte de Guillotine Cutter e o fardo de ter forçado a vida a alguém. Porém, foi perdido neste inferno que Araragi encontrou propósito para si. O primeiro de continuar a tentar e não desistir, ao encontrar uma boa amiga em Hanekawa. O segundo, é o reavivamento de sua noção de justiça. O terceiro é a devoção para com Kissshot. O desejo de vê-la bem, de querer dar a oportunidade para que ela seja feliz algum dia. Ele quer que ela viva por ele e por si, mas está pronto para morrer por ela novamente se for preciso. O que também mostra um pouco da compreensão que tem de si e de como deve levar a sua vida adiante valorizando o presente e o futuro.

Para Kissshot não poderia haver prisão mais cruel. Ela jamais iria ferir Araragi, tampouco desejaria sua morte. Mesmo com raiva, mesmo ignorando-o, mesmo se afastando. Kissshot não iria abandonar aquele que a presenteou com o seu propósito de vida. Ela o viu crescer e superar os seus anseios, mas agora vive a solidão de quem foi deixada para trás, pois é incapaz de dar um passo a frente por si só.

Com o tempo, no entanto, ela aprenderia que ainda poderia dar voz ao seu propósito de outra forma que não fosse o suicídio. Ela poderia viver com Araragi, como ela queria, mesmo sob uma forma diferente. Ela só precisaria perdoa-lo por submetê-la a sua condição, mas isso é um outro conto…

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